A recusa do Brasil em classificar o PCC e o Comando Vermelho como organizações terroristas revela mais que divergência semântica — expõe um perigoso descompasso entre direito e realidade. A questão transcende definições legais: trata-se de reconhecer uma nova forma de poder que desafia a própria existência do Estado.
O argumento oficial é tecnicamente correto. A Lei 13.260/2016 vincula terrorismo a motivações ideológicas específicas — xenofobia, discriminação, preconceito. Como o motor dessas facções seria econômico, não político, escapariam da classificação. Mas essa leitura ignora uma transformação fundamental que o Professor Benjamin Lessing, da Universidade de Chicago, denominou “governança criminal” em apresentação que presenciei no Fórum de Chicago de 2024, promovido pela Faculdade de Direito da Universidade de Chicago e pelo IBDL, no qual tive a honra de ser co-organizador.
Essas organizações evoluíram. Não mais gangues prisionais, tornaram-se estruturas burocráticas que administram territórios e populações. Cobram tributos, resolvem disputas, impõem códigos de conduta. Exercem, de fato, funções estatais. O cidadão sob seu domínio vive num “duopólio de violência” — sujeito tanto às leis do Estado quanto às da facção.
Aqui, a distinção entre motivação econômica e política se dissolve. O lucro pode ser o objetivo, mas o método é intrinsecamente político: a dominação territorial através do terror sistemático. Os mega-ataques do PCC em 2006 não foram transações comerciais — foram demonstrações calculadas de força para dobrar o poder público.
A legislação americana sobre Organizações Terroristas Estrangeiras adota critério mais funcional: foca nos atos e consequências, não nas motivações ideológicas. Terror é o uso de violência para intimidar populações ou influenciar governos. Exatamente o que fazem PCC e CV ao impor sua “lei do crime” através do medo generalizado.
O custo econômico dessa governança paralela é mensurável: investimentos perdidos, gastos com segurança, vidas ceifadas. Mas o custo institucional é ainda maior. Cada território sob controle dessas facções representa uma fratura na soberania nacional. Cada cidadão que recorre à “justiça” do crime organizado confirma a falência parcial do Estado.
Classificar corretamente não é preciosismo jurídico — é reconhecer a natureza do desafio. Terrorismo não se define apenas por bombas e manifestos ideológicos, mas pelo uso sistemático da violência para subverter a ordem política. Quando organizações criminosas governam territórios e populações através do terror, a motivação econômica torna-se irrelevante diante do método político.
Ao insistir numa interpretação restritiva da lei, o Brasil não apenas erra o diagnóstico — compromete o tratamento. Enquanto debatemos semântica, a soberania estatal é progressivamente corroída por poderes paralelos que já controlam parcelas significativas do território nacional.
A pergunta não é se PCC e CV se enquadram perfeitamente numa definição legal criada para outro contexto. É se o Estado brasileiro terá a lucidez de reconhecer e nomear adequadamente uma ameaça que já opera, na prática, como força política alternativa em vastas porções de seu território.
Fabio Malina Losso, Doutor em Direito Civil pela USP, é Conselheiro do IBDL. Foi membro de conselho da Universidade de Chicago entre 2009-2024, onde também foi pesquisador visitante.