Em Replay – Memórias de uma família (Conrad), Jordan Mechner, criador da franquia de videogames Prince of Persia, conta a história de sua família a partir dos acontecimentos da vida de três personagens. O avô, que lutou nas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial, o pai, que fugiu do regime nazista na Segunda Guerra Mundial, e dele próprio, que criou sozinho um dos grandes sucessos da história dos videogames. Em entrevista a VEJA, Mechner conta por que optou por contar essas histórias no formato de graphic novel, o desafio de mudar de suporte, como essas histórias se relacionam com o presente e outras coisas. A seguir, os principais trechos da conversa
Por que você escolheu o formato de graphic novel, e não outro meio, para contar suas memórias em Replay?
A escolha do formato de graphic novel foi um retorno ao meu primeiro amor, pois eu amava quadrinhos desde criança e até pensei em seguir essa área antes de me dedicar aos videogames. Eu sempre gostei de quadrinhos. Pensei que desenhar a história como um livro em quadrinhos seria uma ótima maneira de contá-la. Queria narrar a interessante evolução da indústria, desde os computadores iniciais até as grandes equipes e consoles, culminando no filme baseado em Prince of Persia. Além disso, fui inspirado por obras notáveis do gênero, como Persépolis e Maus.
Replay não trata apenas de Prince of Persia, mas também das experiências dramáticas de seu pai e avô. Como essas três narrativas distintas se uniram?
Replay é, na verdade, três livros em um. Originalmente, pensei em fazer volumes separados: um sobre minha história de criação de jogos nos anos 1980, outro sobre a infância incrível do meu pai na França ocupada (onde ele sobreviveu com sua tia Lisa a partir dos sete anos), e um terceiro sobre meu avô. Meu avô cresceu no início do século XX, lutou na Primeira Guerra Mundial nas trincheiras da Frente Russa, tornou-se médico em Viena e depois foi forçado a fugir por ser judeu na década de 1930.
Qual a solução?
Decidi que a única maneira de contar as histórias deles era através da minha, pois eu cresci com um pai e um avô que viveram essas coisas. Senti que não tinha o direito de contar diretamente a história de outra pessoa. Como filho de sobreviventes, herdei essas histórias e senti que minha própria vida, fazendo quadrinhos ou videogames, era menos dramática do que a experiência de sobreviver a duas guerras mundiais.

Como o jogo Prince of Persia atua como um elo entre suas memórias pessoais e as histórias dramáticas de sua família?
O crescimento como filho de sobreviventes e a forma como essas histórias geracionais se ligam se tornaram o tema central do livro. Prince of Persia acabou se tornando o fio condutor que conectou tudo. O desenvolvimento do jogo original nos anos 80 foi, em muitos aspectos, um projeto de família: meu pai compôs a música, e meu irmão serviu de modelo para a animação. Há, inclusive, uma surpresa no livro envolvendo meu avô, na qual descobri que sua experiência como refugiado encontrou o caminho no jogo – especificamente através do pequeno rato branco que resgata o príncipe ao abrir um portão – sem que eu soubesse conscientemente.
Qual é diferença entre desenhar uma graphic novel e programar um jogo, como você fez nos primeiros Prince of Persia?
São ofícios muito diferentes, mas ambos exigem que você esteja ciente da visão geral do projeto (que pode levar anos) e, ao mesmo tempo, totalmente imerso nos detalhes. Na programação, levaria um fim de semana para codificar uma pequena peça do jogo, como a parte que faz um bloco cair ou espinhos saltarem, e isso é apenas uma peça do quebra-cabeça.
E no caso dos quadrinhos?
Com a graphic novel, é semelhante. O livro tem cerca de 1.500 desenhos individuais em 300 páginas. Embora o leitor perceba o ritmo e a emoção da história, quando estou desenhando um painel, preciso me imergir totalmente nos detalhes, pensando na composição, luz, tipo de tinta e pincel – o que confere ao desenho um elemento muito técnico, assim como a programação.

Dado o contexto de guerras mundiais e perseguição no livro, qual é a relevância de Replay para o cenário político e social atual?
Em todos os meus projetos, mesmo os históricos, eu penso através da lente do mundo em que vivo e vejo paralelos com o presente. Embora eu não tenha começado Replay com a intenção de fazer um ponto político, ao contar a história da minha família de forma verdadeira, ela se torna relevante, pois os temas mais importantes da vida são universais e não mudam muito. O desejo dos pais de protegerem seus filhos e serem forçados a deixar seu lar por perseguição ou guerra são experiências universais.
Que se repetem, ou melhor, que têm “replay”.
O que aconteceu com meu pai e meu avô na Europa do século XX não é apenas história. A guerra e o deslocamento continuam a acontecer hoje, seja na Síria, Gaza ou Ucrânia. A Segunda Guerra Mundial foi um tipo de “replay” da Primeira, e as guerras de hoje são outro “replay”. Espero que o livro dê às pessoas um senso de conexão e as ajude a desenvolver empatia por refugiados, imigrantes e por seus próprios familiares que passaram por experiências difíceis e talvez não queiram falar sobre elas.
Você acompanhou a indústria de games desde o início. Como vê o contraste entre a criação solo de Prince of Persia e os projetos AAA de hoje?
Sinto-me privilegiado por ter crescido junto com a indústria, que hoje é uma das maiores formas de entretenimento de massa, possivelmente maior que filmes e televisão em termos de números. Quando comecei, fazer um jogo era um trabalho para uma pessoa, como Karateka ou o Prince of Persia original, muito parecido com fazer uma graphic novel, sem precisar de um grande orçamento. Com o tempo, as equipes cresceram. Sands of Time (com a Ubisoft) tinha 25 a 30 pessoas; hoje, os jogos têm centenas de colaboradores. Trabalhar em grandes equipes é emocionante e colaborativo, parecido com fazer um filme. No entanto, a desvantagem é que, em grandes projetos, as demandas corporativas e de marketing para que o projeto seja lucrativo podem ofuscar o esforço criativo. Felizmente, a comunidade de jogos independentes (indies) permite que as pessoas continuem fazendo títulos inovadores com equipes muito pequenas (como Minecraft), o que torna a indústria atual um universo de possibilidades.
Você ainda está envolvido com a indústria de jogos ou está totalmente focado nas graphic novels?
Atualmente, não estou trabalhando em um jogo. Meu foco está em desenvolver várias graphic novels, como uma atualização moderna de O Conde de Monte Cristo e o livro Liberty (sobre Beaumarchais). O último projeto de jogo que mencionei em Replay (que me levou à França) acabou sendo cancelado. No entanto, o legado de Prince of Persia está muito ativo. Três projetos diferentes foram lançados recentemente: The Lost Crown, o remake de Sands of Time (que será lançado em breve) e o indie The Rogue Prince of Persia. Embora eu não faça parte da equipe de nenhum deles, dei minha bênção. Estou feliz em ter meu tempo dedicado à escrita e ao desenho de livros.
Que outras graphic novels você está lendo que o inspiram atualmente?
Estou lendo o livro Pour une Fraction de Seconde, de Guy Delisle. É sobre Eadweard Muybridge, que inventou a fotografia em movimento ao fotografar cavalos correndo, em uma época anterior ao cinema. Este trabalho me interessa profundamente porque o processo de rotoscopia que usei nas animações dos meus jogos (Prince of Persia) é uma iteração moderna do processo inventado por Muybridge.