Nunca se viu um concurso de miss com tantos desdobramentos negativos – e a revolta pela eleição da mexicana Fatima Bosch é apenas um dos capítulos menos complicados. Agora, ganham corpo as denúncias de resultado fraudado em razão dos enroscos com a justiça do coproprietário do concurso, o milionário mexicano Raúl Rocha Cantú, com quem o pai de Fatima trabalha.
Rocha é investigado por nada menos de vinculação com uma rede do crime organizado envolvida em crimes como narcotráfico, tráfico de armas e contrabando de combustível procedente da Guatemala. O caso é investigado no México pela Promotoria Geral da República. Bernardo Bosch Hernández, funcionário da Pemex e pai de Fatima, tem negócios com Raúl Rocha. Uma das procuradoras pediu um mandado de prisão contra Rocha em agosto e, no mês passado, o empresário propôs uma delação premiada.
Não é o único encrencado ligado ao concurso, um evento comercial que já pertenceu a Donald Trump. Na quarta-feira passada, foi emitido um mandado de prisão contra Jakkaphong Jakratujapit, uma empreendedora trans conhecida como Anne. O caso envolve uma venda de ações considerada fraudulenta. Anne tem uma rede de veículos de comunicação que está em recuperação judicial. Ela comprou o concurso Miss Universo em 2023 e depois vendeu 50% para o mexicano Raúl Rocha.
Mesmo antes do incidente em que um dos diretores tailandeses do concurso chamou Fatima Bosch de “burra”, já corriam boatos fortes de armação. O que parecia uma vitória combinada para resgatar a imagem do concurso e premiar a miss mexicana pela ofensa sofrida, na verdade entrou para um caminho muito mais complicado.
Um dos jurados, Omar Harfouche, músico e empresário franco-libanês, renunciou à posição e disse que Fatima Bosch era “uma falsa ganhadora”. Ele acusou o coproprietário mexicano do concurso de pressioná-lo para votar em Fatima porque “será bom para nosso negócio”. Também mencionou as relações comerciais de Raúl Rocha com o pai de Fatima.
ANTES E DEPOIS
Será que algum puro de alma ainda acha que concursos de miss são mais incontestáveis do que voto em cédula de papel?
Talvez até algumas participantes acreditem nisso. Duas colocadas entre os primeiros lugares no Miss Universo renunciaram depois da eleição de Fatima. Olivia Yacé, uma deusa negra da Costa do Marfim, e Brigitta Schaback, a linda e loira Miss Estônia. Qualquer uma delas poderia estar, com muito mais merecimento, no lugar de Fatima. “Respeito, dignidade, excelência e igualdades de oportunidades são os princípios fundamentais que me guiam”, espetou Olivia ao anunciar a demissão voluntária.
Curiosamente, muitos mexicanos não entraram no clima de patriotada e as redes sociais vibraram com denúncias que a própria eleição de Fatima como Miss México havia sido combinada. Também correram o país as fotos do “antes e depois” da miss – algumas até exagerando seus defeitos. Virar outra pessoa é uma expressão que deve ser tomada literalmente no caso dela.
Escolher ganhadoras com base em qual é a mais bela é um anacronismo que continua a ter público por apelar a forças poderosas, como o espírito de competição e os circuitos de classificação que estão entranhados no cérebro humano. Se gostamos de ver qual o atleta corre melhor e quem pilota o carro mais veloz, também não resistimos a algumas dezenas de jovens lindas – e, claro, todas com boa formação profissional, desenvoltas e bem falantes, para disfarçar o fato de que estão sendo julgadas pelos atributos físicos. Para atenuar, até os biquínis do passado recente foram substituídos por peças maiores ou simplesmente eliminados.
PODER DE ESCOLHER
A ideia de um concurso de miss feminista não tem cabimento, mas é propagada mesmo assim. Para as participantes, pode significar um salto na carreira ou até um incentivo ao velho princípio de arranjar um bom marido. Quem não quiser ser julgada por tais critérios, pode ficar em casa estudando para a pós-graduação. O poder de escolher é a vantagem intrínseca de um mundo em que as mulheres não se sentem mais obrigadas a desfilar na passarela em trajes sensuais, mas também pode fazê-lo se quiserem.
Foi desfilando na passarela que a Miss Jamaica, Gabrielle Henry, envolta numa nuvem de paetês bronze, sofreu uma grave queda e precisou ser hospitalizada por uma semana, um dos muito incidentes do concurso este ano. Para complicar, a Miss Haiti, Melissa Sapini, disse que as participantes foram convocadas para uma reunião depois do acidente e uma pessoa da organização disse que a queda tinha sido por culpa de Gabrielle Henry, porque “não estava prestando atenção”.
Melissa mora em Massachusetts por não existirem conduções para um concurso de miss no Haiti – aliás, não há condições para praticamente nada, com gangues de bandidos tendo praticamente o controle territorial do país.
Várias misses, dignamente, se retiraram da sala quando um diretor tailandês chamou Fatima Bosch de “burra” por não ter participado de um evento de divulgação. A vitória dela como Miss Universo parecia uma forma de compensar uma ofensa tão grande, mas a realidade se mostrou muito mais enroscada. Retiraram-se do concurso, além das representantes da Costa do Marfim e da Estônia, as misses de Portugal, França, Noruega, Curaçao e Guadalupe.
BRAÇO DO CRIME
“Vocês roubaram dinheiro das meninas afrocaribenhas? Deixaram que competissem sabendo que nunca ganhariam?”, desafiou a Miss Guadalupe.
Tal como existe hoje, o Miss Universo está totalmente desconstruído, derrubado, no chão.
O coproprietário mexicano, Raúl Rocha, também está sendo acusado de infiltrar a Procuradoria Geral da República, pagando para conseguir informações sobre investigações que o afetassem. Há suspeitas de que lavasse dinheiro para duas gangues de narcotraficantes, a União Tepito e o Cartel Jalisco Nova Geração, conhecido pela extrema violência até mesmo entre os cartéis.
Nesse caso, o concurso de Miss Universo seria apenas uma fachada a mais para o crime. Teria que ser vendido ou simplesmente fechado, não apenas por manipular ganhadoras, como ser um braço de atividades criminosas.
É inacreditável, mas está acontecendo diante dos nossos olhos – e dos olhos maquiados e ampliados pelos maiores pares de cílios postiços existentes na natureza das jovens mulheres que foram enganadas e usadas por uma organização criminosa. Em vez de vermos o feminismo acabar com uma instituição tão datada, é o masculinismo criminoso que a sabotou pela base.