Donald Trump voltou a mirar o tabuleiro da América Latina — e desta vez reforçou a Argentina como seu principal peão estratégico. Em tom paternalista e messiânico, o presidente americano afirmou que o país vizinho “luta por sua sobrevivência” e prometeu ajudar Javier Milei “a manter a Argentina viva em um mundo livre”. A fala, feita a bordo do avião presidencial, soou como gesto de apoio direto ao aliado libertário, a apenas dias das eleições legislativas argentinas, e teve repercussão imediata nos mercados da região.
Para o economista Igor Lucena, entrevistado no programa Mercado, de VEJA, o gesto é menos sobre solidariedade e mais sobre geopolítica calculada. “Trump está usando Milei como vitrine de uma nova doutrina de influência americana na América Latina”, avaliou. “A mensagem é clara: se você se alinhar aos Estados Unidos, terá suporte financeiro e político. Caso contrário, ficará isolado.”
Segundo Lucena, o apoio de Washington ao governo argentino já se traduziu em medidas concretas. O Federal Reserve autorizou uma linha de swap de até 40 bilhões de dólares com o Banco Central da Argentina — um colchão de liquidez que, nas palavras do economista, “garante sobrevida ao país e reforça a narrativa de que o alinhamento com Trump rende resultados tangíveis”.
O xadrez regional
Para além da retórica, Trump enxerga a Argentina como a âncora de um bloco de direita na América do Sul, capaz de contrabalançar a influência de regimes mais próximos à China e à Rússia. “Trump quer reconstruir a lógica do ‘América para os americanos’, versão século XXI”, explicou Lucena. “Ele está tentando costurar uma frente ideológica que reúna governos aliados — como Argentina, Paraguai e, possivelmente, Bolívia — para conter o que ele chama de invasão chinesa em seu quintal estratégico.”
A aproximação com Milei, portanto, tem valor simbólico e estratégico. Desde o colapso econômico argentino e o início do governo ultraliberal, a Casa Branca tem oferecido respaldo público e diplomático, ainda que com condições claras. Trump condicionou novos aportes ao avanço de Milei no Congresso, nas eleições de meio de mandato marcadas para quinta-feira, 23 de outubro, quando o libertário tenta consolidar maioria legislativa.
“O gesto tem múltiplos destinatários”, observou Lucena. “Serve não apenas para acalmar investidores e impulsionar a Argentina, mas também para enviar uma mensagem a outros governos da região: quem se alinhar a Washington poderá receber ajuda financeira e proteção política.”
O papel do Brasil e o efeito dominó
O economista também destacou o impacto indireto dessa reaproximação para o Brasil, que hoje mantém relações frias com o governo Trump. “O Brasil deixou de ser o principal canal de interlocução dos Estados Unidos na América do Sul”, disse Lucena. “Com Milei, Trump tenta preencher esse vácuo, transformando Buenos Aires no novo ponto de apoio americano no Cone Sul.”
Esse redesenho estratégico também influencia o tabuleiro venezuelano. Segundo Lucena, há movimentos discretos de Caracas para ensaiar uma transição controlada, algo que interessa a Washington. “Trump quer evitar rupturas bruscas, mas defende uma transição que leve o regime venezuelano mais à direita”, afirmou.
A equação que emerge é a de uma nova disputa de influência na região, com a Casa Branca usando incentivos econômicos e diplomáticos para reconstruir uma zona de poder perdida nas últimas décadas.
Ao transformar Milei em símbolo de resistência liberal na América Latina, Trump tenta reatar os fios de uma hegemonia antiga com os instrumentos do populismo moderno — dólar, ideologia e espetáculo. Para Washington, é uma aposta de alto risco. Para Milei, um salva-vidas político. E para o Brasil, mais um lembrete de que o centro de gravidade continental pode estar mudando de endereço.