Até dentro de Israel há quem prefira evitar o assunto, considerando que é humilhante demais para o país. Fora, os de sempre aproveitam para “aliviar” a responsabilidade do Hamas por atos de violência sexual praticados contra reféns homens – mulheres também haviam relatado abusos dessa natureza. Somados a atrocidades do gênero praticadas em ampla escala durante o ataque de 7 de outubro de 2023, formam um quadro de violência sexual persistente, não uma exceção como a dos militares que estão sendo julgados pelo estupro anal com um objeto contra um prisioneiro do Hamas na penitenciária de Sde Teiman.
O mais recente relato foi feito por Guy Dalal-Gilboa, de 23 anos. Ele foi capturado no festival Nova e levado para Gaza, onde ficou aprisionado com mais três israelenses.
Alertamos que o relato é pesado e o ex-refém teve uma grande coragem moral ao contar o que passou, tendo sido obrigado a manter segredo até mesmo para os companheiros de cativeiro.
“Ele me pegou, colocou um revólver na minha cabeça e uma faca no pescoço e disse que se eu contasse alguma coisa aos que estavam lá dentro me mataria”, contou.
‘ESSAS COISAS SÃO PROIBIDAS’
O homem que chama de “ele” estava obcecado por sexo com Dalal-Gilboa. Propunha que vissem filmes pornô juntos. O abuso aconteceu quando o refém foi autorizado a tomar um banho. “Ele me pegou à força e me empurrou para o quarto dele, não deixou que eu me vestisse e tirou sua calça”.
Dalal-Gilboa tentou usar o argumento mais poderoso de todos, ancorado na religião. Disse ele: “Você está brincando? Isso é proibido no Islã. Você é muçulmano, essas coisas são proibidas”.
“Ele começou a tocar todo o meu corpo e eu travei. Começou a tocar meu pescoço e minhas costas”.
Segundo ele, o abuso se tornou mais violento e invasivo. Decidimos parar por aqui para não chocar os leitores.
Dalal-Gilboa é o segundo refém homem a denunciar violência sexual. Rom Braslawski, de 21 anos, teve a coragem de ser o primeiro. Além de espancado, torturado e alimentado apenas com o mínimo para não morrer, também foi amarrado e submetido a suplício sexual. O responsável era um homem parrudo, de cerca de cem quilos, que costumava pular sobre o corpo enfraquecido de Braslawski.
OUTRO DIA NO INFERNO
O ex-refém foi submetido a sucessivas sessões de violência sexual, entre outras barbáries. “O objetivo era me humilhar. Era esmagar minha dignidade. E foi isso exatamente o que ele conseguiu”.
“É muito difícil falar sobre isso, Foi uma coisa horrível. Nem os nazistas fizeram isso”.
“Todos os dias eu dizia a mim mesmo: sobrevivi a outro dia no inferno. Na manhã seguinte, acordava no mesmo inferno. E mais um dia, e mais um. Não acaba nunca. Eu sobrevivi a um encontro com o demônio”.
Braslawski foi o primeiro refém homem a falar sobre a violência sexual sofrida. Duas ex-reféns, Amit Soussana e Ilana Gritzlewsy, também haviam denunciado abusos dessa natureza. Ilana disse que os abusos começaram dentro do carro em que foi levada para Gaza e ela desmaiou. Quando acordo, estava num recinto com sete homem e sem parte da roupa. Amit contou que seu carcereiro encostou um revólver na sua cabeça e a obrigou a fazer um ato sexual. Depois, ele disse que era “um homem mau” e pediu que ela “não contasse a Israel” o que havia feito.
Amit teve a coragem de contar, o que todos nós podemos imaginar que é difíicilimo. Ninguém quer carregar o ônus – absurdo, mas real – de ter sido vítima de violência sexual.
Vários carcereiros, inclusive civis cujas casas foram usadas como cativeiro, disseram a outros reféns que tinham “sorte” porque estavam sendo tratados segundo preceitos islâmicos para prisioneiros.
UM TABU DEFINITIVO
O capítulo reféns, o mais complicado para Israel, está chegando ao fim. Na terça-feira, foi liberado o corpo do antepenúltimo refém assassinado ainda mantido em Gaza. Dror Or, de 47 anos, foi morto por terroristas da Jihad Islâmica Palestina junto com a mulher dentro de casa no kibutz Beeri no ataque de 7 de outubro de 2023. Os filhos adolescentes, tomados como reféns, foram soltos durante o primeiro cessar-fogo, no mês seguinte. O corpo de Or foi levado para Gaza por seus assassinos.
É extraordinário como tantos reféns vivos tenham saído psicologicamente fortes depois do cativeiro de quase dois anos em condições atrozes. Muitos, inclusive não praticantes, encontraram força em rituais religiosos judaicos.
Outros dizem que só sobreviveram porque se ampararam nos companheiros de tormento. Os dois homens que sofreram violência sexual, por motivos óbvios, parecem estar em os mais traumatizados. Suas histórias não apenas revelam uma notável capacidade de sobrevivência, mas também ajudam a formatar o ceticismo de muitos israelenses a propostas de pacificação e coexistência. Diante de um inimigo que inflige tais tormentos, a suspensão dos combates é vista apenas como um intervalo até o próximo confronto.
O cessar-fogo, contra as expectativas de tantos que o considerava condenado desde o nascimento, inclusive para não dar o braço a torcer a Donald Trump, está sobrevivendo até agora. As etapas pela frente envolvem complicações extremas. Superar o ódio mútuo, amplificado quando vêm à tona histórias de violência sexual, um tabu definitivo, é apenas uma delas.