Existe uma “maldição dos Kennedy”? Muitas pessoas acham que a fatídica sequência de tragédias no grande e poderoso clã apenas reflete a enorme atenção que até hoje os integrantes da família ocupam na categoria de arquétipos americanos, uma espécie de encarnação da história nacional, e, consequentemente, com enorme capacidade de ativar forças inconscientes da nação.
Já todos os outros reagiram exatamente da mesma maneira ao anúncio feito por Tatiana Scholessberg, a neta de 35 anos que nunca conheceu o avô, John Kennedy, assassinado em 22 de novembro de 1963, de que está com leucemia mieloide aguda e tem apenas a perspectiva de um ano de vida.
É, disseram os não céticos, a “maldição” atingindo mais um membro da família Kennedy. A favor deles, uma lista resumida: além do presidente, foi assassinado seu irmão Robert Kennedy, ou Bob, em 1968; o irmão mais velho, Joseph Kennedy, havia morrido na explosão de seu avião durante a II Guerra Mundial; a irmã Kathleen também morreu em desastre de avião, em 1948; Jacqueline e John Kennedy perderam um casal de filhos ao nascer; David Kennedy, filho de Bob, morreu de overdose em 1984 e seu irmão, Michael, num acidente de esqui. A avó famosa de Tatiana, Jacqueline Kennedy Onassis, teve um câncer de sangue, linfoma não-Hodgkins, que a matou cinco meses depois do diagnóstico, aos 64 anos.
A lista de mortes precoces e violentas da família tem pelo menos dezesseis nomes, fora ocorrências laterais, como o acidente em que o senador Ted Kennedy, caçula dos irmãos, caiu num laguinho raso ao voltar de uma festa com a jovem secretária e amante Mary Jo Kopechne, abandonando-a para morrer afogada no carro e destruindo para sempre as perspectivas dele de vir a ser um futuro presidente Kennedy
REALIDADE INDIZÍVEL
A morte mais impressionante de todas, se podemos usar esse adjetivo, depois dos assassinatos políticos, foi a de John Kennedy Jr., o único filho sobrevivente do presidente. John John, como era chamado na infância, pilotava o aviãozinho que caiu no mar em16 de julho de 1999, matando a mulher, Carolyn, e a irmã dela, Lauren Bessette. O casal era tão bonito e estiloso que até hoje tem seguidores e admiradores.
Tatiana é filha da filha única de John Kennedy e Jacqueliine, Caroline. Mantém o sobrenome do pai, Schlossberg. Tem uma irmã, Rose, e um irmão, John Kennedy Bouvier Schlossberg, conhecido como Jack, um jovem bonitão, ao estilo do tio John John, e com um histórico de postagens revelando um comportamento borderline. Agora, ele quer ser deputado, disputando a vaga de um democrata histórico que se aposentará da política, Jerry Nadler.
A mãe Caroline é contra, talvez porque conheça a instabilidade do filho, talvez porque esteja enfrentando a realidade indizível da morte precoce da filha. Tatiana revelou seu diagnóstico num artigo para a revista New Yorker. Ela ficou sabendo da leucemia gravíssima exatamente depois de dar à luz pela segunda vez, tendo uma filhinha pequena a qual, por causa do tratamento pesado da mãe, incluindo transplante de medula e alto risco de infecções, Tatiana nunca pode amamentar, trocar uma fralda ou aconchegar em seus braços.
É também espantoso que ela não tenha feito exames de sangue no início da gravidez, que provavelmente indicariam a presença da doença. Seu marido é médico urologista e assumiu a orientação do tratamento dela.
‘VOLDEMORT TURBINADO’
Tatiana também revela o profundo ressentimento que divide a família, tradicionalmente democrata e liberal, em relação a seu primo em segundo grau, Robert Kennedy Jr, que tentou uma candidatura presidencial independente e depois passou a apoiar Donald Trump, ganhando como recompensa o cargo equivalente ao de ministro da Saúde.
Bob Jr. é um conhecido adversário das vacinações em massa e defensor de que existe uma relação entre a vacina tríplice e o aumento de casos de autismo. Isso jamais foi nem remotamente comprovado – embora tampouco existam explicações científicas convincentes para o fato de que os diagnósticos de autismo nos Estados Unidos, refletindo um fenômeno também existente em outros países, eram de um a cada cinco mil crianças nos anos setenta, passando de um a cada 31 em 2022.
No artigo confessional, Tatiana diz que sentiu os receios de médicos e pesquisadores envolvidos em seu tratamento experimental quando foi anunciada a nomeação de Bobby Jr. – um comentário excessivamente ressentido, numa hora em que seria melhor buscar a reconciliação ou a paz de espírito, em especial porque não há provas de arrefecimento de pesquisas sobre doenças graves, com destaque para o câncer. O irmão dela, Jack, costuma postar barbaridades contra Bob Jr. e sua mulher, a atriz Cheryl Hines.
A foto acima é de Tatiana antes do tratamento, iniciado há um ano e meio. Agora, depois de quimios pesadíssimas, ela está com os cabelos bem curtos e embranquecidos. Brincava que, com a queda dos cabelos e depois de um tombo responsável por um corte no rosto, tinha se transformado num “Voldemort turbinado”, referência ao vilão deformado de Harry Potter. Seu tipo de leucemia tem uma mutação genética que “gosta de voltar”, segundo disse um dos médicos que a tratam.
‘ÀS VEZES ME ENGANO’
Quando ela ouviu de um deles que tinha uma expectativa de vida de um ano, pensou primeiro nos filhos, como fazem 100% das mulheres com câncer. Pensou acima de tudo, como é inevitável, que as duas crianças pequenas não se lembrarão da mãe. Também sofreu com a ideia de que sua mãe, Caroline, que tinha apenas cinco anos quando o pai presidente foi assassinado, teria que lidar com mais um acontecimento arrasadoramente traumático.
Tatiana, que escrevia sobre assuntos climáticos, diz que as memórias agora ocupam um espaço grande em sua cabeça. “Tantas são sobre minha infância que sinto como se estivesse vendo eu mesma e meus filhos crescer ao mesmo tempo. Às vezes me engano pensando que vou lembrar disso para sempre. Vou lembrar quanto estiver morta”.
“Obviamente, não vou. Mas como não sei o que é a morte e não tem ninguém para dizer o que vem depois dela, continuo fazendo de conta. Vou continuar tentando me lembrar”.
Ao contrário de tantos outros membros de sua família atingidos subitamente pela tragédia, ela está tendo tempo de refletir sobre a morte.
Não dá para dizer se isso é pior ou melhor.