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‘Não vejo como sair da Unesco seria do interesse dos EUA’, diz diretora-adjunta a VEJA

Para além dos próprios resultados, organizações internacionais precisam entender como comunicar esses frutos à sociedade, defende a mexicana Gabriela Ramos, diretora-geral adjunta de Ciências Sociais e Humanas da Unesco e candidata à chefia da agência da ONU para a Educação, Ciência e Cultura.

A VEJA, Ramos comentou a decisão do governo dos Estados Unidos de deixar a organização, rumos do multilateralismo e regulamentação de ferramentas de inteligência artificial.

Recentemente, o governo de Donald Trump retirou os Estados Unidos da Unesco, dizendo que a organização não é do interesse nacional americano. É uma motivação justa? 

É um direito soberano avaliar e tomar decisões como eles quiserem. Mas, vindo do sistema multilateral, tendo estado nele nas últimas duas décadas e tendo visto o quanto podemos ser mais eficazes sempre que instituições contam com o apoio dos Estados-membros, acredito que é preciso que os países garantam a eficácia da instituição.

Não acho que a retirada esteja trazendo esse resultado. A Unesco é a casa da educação e da cultura, é o principal lugar que está olhando para elementos culturais em nossa agenda de desenvolvimento e promovendo cooperação internacional através da cultura e da ciência. Da minha perspectiva, não vejo como isso seria do interesse dos EUA. 

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Com a saída dos EUA há um corte considerável no financiamento. Qual o caminho? 

Claro, há sempre um impacto negativo, visto que 8% não é um número desprezível. Já estávamos nos preparando e tomando algumas medidas de contingência caso isso acontecesse. Mas não se trata de orçamento, mas de liderança. Trata-se de ter todos os principais atores reunidos em torno de uma única mesa. Trata-se de ter um país tão importante como os EUA como parceiro do resto do mundo para os diferentes mandatos da Unesco. E sinto que é isso que nos fará falta, porque podemos cobrir 8%. Quando eu estava à frente do setor de ciências sociais e humanas, conseguimos aumentar o nosso orçamento em 143%. E, portanto, não é que não possamos cobrir, mas é um contexto mais complexo.

Como a senhora vê o cenário global do multilateralismo? Estamos em um ponto de inflexão?

Eu gostaria de ter um debate mais baseado em evidências. Há muitas emoções, há muitos estereótipos, há muitas declarações vazias. Eu trabalhei na OCDE, trabalho na Unesco, instituições muito diferentes, com necessidades muito diferentes em termos de como torná-las mais eficazes. 

Mas, para todo o sistema, sinto que é muito importante primeiro sermos mais eficazes na comunicação de quais foram os nossos sucessos, porque muitas vezes as pessoas na rua nunca saberão que foi porque a Unesco estava fazendo algo na ciência que um grande laboratório foi inaugurado e que uma vacina foi encontrada. Eu mesma fiquei muito satisfeita em ver que nosso trabalho com inteligência artificial estava ajudando 80 países ao redor do mundo a se informarem melhor sobre as políticas necessárias para moldar essa transição tecnológica.

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Como apresentar esses sucessos? 

Acredito que seria importante ter uma visão de como os sistemas bilaterais multiníveis têm apresentado resultados, replicar as histórias de sucesso e torná-las mais conhecidas, para que os países possam se orgulhar de suas instituições e serem mais solidários. Porque, no final, as instituições só alcançam os objetivos que os membros desejam. Somos apenas um espelho de nossas sociedades, de nossa liderança, de nossa disposição para abordar as questões e nos engajar.

A senhora anunciou recentemente sua candidatura a diretora-geral da Unesco. Quais serão suas prioridades?

Estamos em um mundo em que todas as informações estão ao alcance dos dedos. Acho muito importante que tenhamos reformas. É muito importante também obter melhores indicadores de impacto. Muitas vezes, nossos indicadores de impacto são apenas dados, não é? O impacto que você pode ter também está relacionado à relação custo-benefício. 

Tenho uma história que adoro usar de exemplo. Quando eu estava na OCDE, fizemos um relatório sobre o setor de telecomunicações no México e o fato de que a falta de concorrência estava realmente tirando muitos pontos do PIB e do crescimento. E no final, com a reforma que o México fez, eles conseguiram uma redução de 70% na telefonia móvel e mais 55 milhões de pessoas assinaram um serviço de telefonia móvel. Esse é o tipo de coisa que precisamos ter.

Mas se não atingirmos esse nível de compreensão, estaremos desperdiçando nossos recursos em tópicos ou projetos que talvez não sejam tão abrangentes quanto outros. Indicadores são importantes, assim como o acompanhamento do orçamento e a produção de indicadores de custo-benefício. O dinheiro que você recebe dos contribuintes não vem de graça, ele vem às custas de não ser gasto para outros fins.

A capacidade de liderança da ONU tem sido amplamente criticada, especialmente devido aos conflitos na Faixa de Gaza, Ucrânia e Sudão. Como vê isso?

É claro que a situação horrível e inaceitável que está acontecendo em Gaza e o fato de não podermos mudar a realidade de tantas pessoas presas lá é um fracasso. É um fracasso do sistema. Mas isso tem a ver, mais uma vez, com a vontade política. Quem deve ser culpado? As organizações ou os membros dessas organizações que precisam se organizar e fazer o bem? Não podemos culpar as organizações apenas porque elas são criadas pelos países que as habitam e que conseguem ou não chegar a acordos.

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Meu apelo é para que os membros percebam isso e deem às instituições a capacidade de capacitá-las a entregar resultados, estando dispostas a se comprometer e a encontrar soluções em conjunto. 

O departamento que a senhora lidera é responsável pelas discussões sobre inteligência artificial. Há casos crescentes de deepfakes e montagens falsas. Falta regulamentação?

Regulamentações não são a única ferramenta que temos, nem a única ferramenta política que precisamos implementar. Temos impostos, incentivos fiscais, marcos legais, processos de compras públicas que também podem ser condicionados a determinadas entregas da empresa. Portanto, podemos moldar o ecossistema da inteligência artificial de muitas maneiras. O ponto específico que você levanta, é claro, precisa ser regulamentado ou legislado.

A Dinamarca, por exemplo, reconheceu que você seu rosto e sua voz são sua propriedade, o que é incrível, porque assim você terá as ferramentas para entrar com ações judiciais sempre que sua voz, sua imagem ou sua propriedade forem usadas sem sua permissão.  Esta é uma maneira muito interessante e inteligente de fazer isso.

Mas há outras maneiras, porque eu simplesmente proibiria deepfakes. Se eu sou o Estado e meu dever é proteger as pessoas, e estou vendo que as deepfakes estão sendo usadas para confundir as pessoas nos processos democráticos ou para menosprezar as mulheres, porque 90% delas são sexualizadas e usadas para atacar, sem fins de assédio às mulheres, eu simplesmente as proibiria.

É preciso também ter espaço para permitir que as tecnologias floresçam e, então, ver como enquadramos os resultados. E eu acho isso muito importante.

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Sabemos que o setor de tecnologia ainda é majoritariamente masculino. Como aumentar a representatividade feminina?

Antes de mais nada, considero muito importante documentarmos as lacunas. E isso é algo que temos feito por causa da recomendação de ética da IA da Unesco, que garante um capítulo sobre gênero, pois já sabíamos que as meninas são ainda menos propensas a ingressar em carreiras ligadas à ciência e tecnologia. Sabemos que as equipes que desenvolvem essas tecnologias geralmente são compostas exclusivamente por homens e por homens do Norte Global. Apenas 22% de toda a força de trabalho do setor é composta por mulheres e a presença de mulheres no topo é muito, muito baixa. Precisamos ter um ecossistema que permita que as mulheres prosperem. Primeiro, dentro do setor, garantindo que, na educação, nas escolas e nas universidades, eliminemos os estereótipos.

A Unesco usa alguma ferramenta de inteligência artificial para analisar dados ou para outros fins?

Cada vez mais, estamos fazendo relatórios usando machine learning, e isso é incrível. Muitas outras áreas da Unesco no setor cultural e científico estão usando IA. As imagens de satélite de todos os locais que são patrimônios da humanidade, no monitoramento da preservação e do investimento desses locais, também utilizam inteligência artificial, por exemplo. 

Estamos discutindo esses avanços, mas parte do mundo nem sequer tem acesso à internet. Como mudar isso?

Este é um problema muito grande e este é um apelo que fizemos para tornar o modelo de negócios mais inclusivo. Hoje, 80% de todos os desenvolvimentos são feitos pelos EUA, China e Reino Unido, mas os EUA produzem três vezes mais do que a China. É uma lacuna enorme entre os que estão em cima e os outros. Para avançar nessas tecnologias, é preciso conectividade, habilidades, investimentos, capital, tudo isso, e um terço do mundo não tem acesso a uma internet estável. Portanto, é hora de pensarmos também em como podemos garantir os investimentos necessários para os países que estão ficando para trás.

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