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Mudança de hábito traída: o que está em jogo com o movimento que questiona o protetor solar

Um dos grandes desafios da prática médica moderna é promover mudanças comportamentais que favoreçam a saúde e previnam doenças de forma eficaz e sustentável. Recomendações como evitar o cigarro, manter uma rotina de atividades físicas, priorizar uma alimentação rica em fibras e pobre em gorduras já são bem estabelecidas como estratégias fundamentais para reduzir riscos de doenças cardiovasculares e de diversos tipos de câncer.

No caso do câncer de pele, a prevenção está intrinsecamente relacionada ao controle da exposição aos raios ultravioleta (UV). Medidas como evitar a exposição entre 10h00 e 16h00, buscar sombra, usar roupas apropriadas, chapéus, óculos escuros e, claro, protetor solar, formam um arsenal amplamente eficaz de proteção.

A eficácia dessas abordagens, quando adotadas, é sustentada por evidências robustas, oriundas de estudos clínicos e populacionais. No entanto, o verdadeiro obstáculo reside não apenas em comprovar os benefícios científicos dessas intervenções, mas sim em garantir que essas medidas sejam efetivamente incorporadas à rotina diária das pessoas.

Cientificamente sabemos o caminho: a questão é conseguir que os hábitos saudáveis sejam implementados e mantidos.

A Austrália é um caso emblemático neste cenário. Com a maior incidência de câncer de pele do mundo, o país se tornou um modelo em termos de estratégias públicas para mitigação dessa condição evitável. O elevado contingente populacional de origem europeia, caracterizado por tipos de pele mais vulneráveis à radiação ultravioleta, aliado ao índice insolitamente alto de exposição solar na região, contribui para um cenário alarmante.

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Reconhecendo a gravidade do problema, a Austrália iniciou, na década de 1980, amplas campanhas governamentais de prevenção do câncer de pele. Essas iniciativas envolveram estratégias educacionais direcionadas a escolas primárias e secundárias, coleta sistemática de dados epidemiológicos e até incentivos fiscais para a aquisição de equipamentos de proteção individual. 

Apesar desse histórico de avanços, recentemente a Austrália foi palco de um escândalo que trouxe um alerta global. Uma entidade independente de defesa do consumidor avaliou a eficácia de 20 marcas de protetores solares disponíveis no mercado local. O resultado foi preocupante: 16 dessas marcas não atingiram o nível de proteção indicado pelos fabricantes.

Essa inconsistência entre o fator de proteção solar (FPS) anunciado e o efetivamente entregue pelo produto foi um golpe direto à credibilidade de uma das principais armas contra o câncer de pele.

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Não se trata de um problema exclusivo da Austrália. A regulação de protetores solares varia consideravelmente ao redor do mundo. Na União Europeia, por exemplo, protetores solares são classificados como cosméticos, o que resulta em uma regulação menos rigorosa.

Já na Austrália e no Brasil, esses produtos estão enquadrados como medicamentos sem necessidade de prescrição. Esse enquadramento exige que os protetores obedeçam a uma série de critérios técnicos e de qualidade, além do FPS.

No entanto, mesmo em sistemas regulatórios mais rigorosos, o incidente australiano mostra a necessidade urgente de maior fiscalização e controle pós-comercialização.

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Um evento como esse transcende a discussão técnica e médica: abala a confiança da população na saúde pública e fragiliza os esforços de prevenção. Desacreditar um elemento-chave para a melhoria da saúde individual e coletiva, seja por negligência de fabricantes, estudos de baixa qualidade ou falhas regulatórias, coloca em risco conquistas que demandaram décadas de esforços. 

A verdade é que mudar hábitos não depende unicamente de informações bem aplicadas vindas de profissionais de saúde ou da motivação pessoal de pessoas, muitas das quais sequer se percebem como doentes. O sucesso desse desafio depende de um esforço coletivo de toda a sociedade.

Quando fabricantes falham, quando estudos carecem de rigor ou quando regulações são ineficazes, o peso recai não apenas sobre a eficácia ou os custos financeiros do tratamento, mas também sobre a estrutura social como um todo.

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Por fim, a educação em saúde é um pilar essencial para promover mudanças de comportamento, mas ela jamais pode caminhar sozinha.

Em tempos marcados por informações abundantes, exige-se rigor técnico e científico irrepreensível. Sem essa base sólida, cada esforço de prevenção pode ser frustrado pela desconfiança ou pela própria falha dos sistemas que deveriam proteger a população.

Quando isso ocorre, não apenas as atitudes deixam de mudar – elas retrocedem. E, nesse processo, a própria mudança de hábito é traída.

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* Rafael Aron Schmerling é oncologista clínico e líder de tumores cutâneos e sarcomas da Rede Américas

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