Meu marido, Laudemir Fernandes, gari de profissão, foi assassinado a tiros por um empresário, enquanto trabalhava, em Belo Horizonte. É a mais grave violência que já sofreu, mas, infelizmente, não a única. Quase todo dia, ao chegar em casa, ele me contava toda sorte de agressões verbais e simbólicas sofridas no trabalho — digno, aliás, como qualquer outro. Um dos episódios mais marcantes ocorreu no ônibus, no qual embarcava de madrugada. Lau, como costumava chamá-lo, vestia o uniforme brilhando de tão limpo, mas uma mulher se recusou a sentar-se ao seu lado. Ele cochilava e acabou sendo acordado com o burburinho. Para não incomodar, levantou-se e ficou na escada do coletivo, tomando vento gelado na cara. Por vezes, o ataque não tinha disfarces. “Vou passar com o carro por cima de você”, escutava com frequência de motoristas apressados.
As intimidações, no entanto, nunca haviam se concretizado. Até Renê da Silva Nogueira Júnior cruzar o caminho de meu esposo. O caminhão de coleta atravancava o trânsito e o empresário se irritou com a lentidão. Após ameaçar a motorista da equipe, sacou uma pistola e atirou a esmo. Laudemir, que continuava o seu trabalho em meio à confusão, acabou atingido. Socorrido, não resistiu e morreu no hospital. Naquela manhã, estranhei ele não ter me ligado para dividir as tarefas do dia, como sempre fazia. Telefonei para a irmã dele perguntando se sabia onde ele estava. Imaginei que pudesse ter ficado na portaria do serviço, onde costumava conversar e organizar a rota de limpeza urbana. Na hora do almoço, minha cunhada me ligou, aos prantos, para contar o ocorrido. Minha sogra, em choque, havia recebido a notícia pela TV. Fiquei sem chão, precisei ser amparada pelos colegas de trabalho. Mas não podia fazer nada, só chorar.
O Laudemir era devoto à família, estava sempre preocupado em nos agradar. Um paizão para a filha Nicole, de 15 anos, e para minhas duas meninas de outro relacionamento, adotadas como se fossem dele. Estão todas desoladas. Não consigo entender como Renê foi capaz de cometer um homicídio a sangue-frio. Atirou e decidiu passear com os cachorros e malhar na academia, de onde saiu preso. Para ele, a vida de meu marido não tinha valor. Creio ter sido movido pelo preconceito, pelo racismo e pela certeza de impunidade. Principalmente por ser casado com Ana Paula Balbino, uma delegada a quem a arma pertencia. A vida dela também foi destruída, já que foi afastada do cargo e está sob investigação da corregedoria. Sinto, em meu coração, que ela também é vítima dele. Mas foi negligente por não ter cuidado adequadamente de seu instrumento de trabalho. Agora, a defesa de Renê alega que ele tem problemas psiquiátricos, mas isso só agrava a situação. Quero punição para os dois, conforme determina a lei.
Desde que o caso ganhou as manchetes, recebi uma onda de solidariedade, com mensagens diárias de apoio de desconhecidos, se compadecendo pela tragédia. Muitos desejam a morte de Renê. Eu não. Sei que a justiça brasileira é muitas vezes lenta, mas estou disposta a ir até o fim para o crime não ficar impune. Sigo recebendo relatos de empregados de limpeza urbana, vítimas de ofensas. Quero que os coletores tenham dignidade, segurança e sejam tratados com o merecido respeito. É preciso instalar câmeras e alarmes nos caminhões. É duro ser gari. Não é apenas a bala que mata. São muitas as histórias de funcionários gravemente feridos por cacos de vidro, seringas e outros materiais perfurantes. A população precisa tomar consciência e respeitar esses profissionais que se dedicam a cuidar da cidade. Se depender de mim, eles não serão mais invisíveis. Meu marido era um homem amoroso, um pai dedicado e um bom trabalhador. Não era lixo.
Liliane França em depoimento a Paula Freitas
Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2025, edição nº 2960