Um relatório da Classificação Integrada das Fases da Segurança Alimentar (IPC, na sigla em inglês), órgão apoiado pela ONU, apontou nesta sexta-feira, 19, que 100 mil pessoas ainda enfrentam o mais alto nível de fome — Fase 5 na escala da IPC — e vivem em “condições catastróficas” na Faixa de Gaza. O documento reconheceu que o aumento do fluxo de ajuda humanitária após o início do cessar-fogo entre Israel e Hamas, em outubro, possibilitou um maior abastecimento de alimentos, mas advertiu que a crise humanitária não foi aplacada no enclave palestino.
O novo relatório indicou que, caso o cenário de pausa nas hostilidades se mantenha, o número de palestinos em situação catastrófica comece a diminuir e caia para 1.900 até abril. A desnutrição atingiu níveis críticos na Cidade de Gaza, maior conglomerado urbano do território, e parâmetros graves em Deir al-Balah e Khan Younis. A análise salientou que qualquer progresso pode ser perdido se a guerra for retomada e que o quadro é “altamente frágil”.
“No pior cenário possível, que incluiria a retomada das hostilidades e a interrupção do fluxo humanitário e comercial, toda a Faixa de Gaza corre o risco de sofrer com a fome até meados de abril de 2026”, alertou a IPC.
Entre os principais fatores para a insegurança alimentar, segundo o órgão, estão o acesso humanitário restrito, o deslocamento de mais de 730.000 pessoas e a destruição dos meios de subsistência, incluindo mais de 96% das terras cultiváveis em Gaza. Em agosto, o IPC declarou estado de fome generalizada em Gaza, o primeiro a afetar o Oriente Médio. A declaração de um estado generalizado de fome acontece quando três limites críticos – privação extrema de alimentos, desnutrição aguda e mortes relacionadas à fome – são ultrapassados.
O Ministério das Relações Exteriores de Israel afirmou que o levantamento foi “deliberadamente distorcido” e “não reflete a realidade na Faixa de Gaza”. Antes da divulgação dos resultados, o COGAT, braço de assuntos humanitários do Ministério da Defesa israelense, informou que a IPC não dialogou com o país sobre a metodologia empregada, “reforçando uma narrativa falsa, impulsionada em parte por alegações originadas no Hamas, enquanto ignorava as reais condições humanitárias no terreno”.
Após a suspensão de um segundo cessar-fogo em fevereiro, o enclave chegou a ficar três meses à míngua, até que o governo de Israel decidiu, com apoio dos Estados Unidos, eleger como principal distribuidora local de comida a Fundação Humanitária de Gaza (GHF), uma empresa americana pouco experiente que reduziu a entrega a quatro pontos (contra os 400 de antes). O panorama só foi progressivamente agravado, em meio a ataques das forças israelenses perto dos locais de distribuição. Em novembro, a GHF disse que concluiu a missão em Gaza.
+ ONU reduz pela metade projeção de ajuda humanitária para 2026 e alerta contra apatia
Dois anos de destruição
O rastro de escombros é 12 vezes maior do que a Grande Pirâmide de Gizé, no Egito. De cada 10 edifícios que antes existiam em Gaza, oito foram danificados ou arrasados. Encurralada, restou à população de Gaza tentar fugir dos bombardeios. Mais de 1,9 milhão de pessoas, ou 90% do enclave, foram deslocadas, de acordo com a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA). Em Israel, em comparação, cerca de 100.000 pessoas tiveram de deixar suas casas.
Acredita-se que 40 mil crianças tenham perdido um ou ambos os pais, segundo o Escritório Central de Estatísticas da Palestina, que definiu a situação como “a maior crise de órfãos da história moderna”. Além disso, dados de março do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apontaram que entre 3.000 e 4.000 crianças em Gaza tiveram um ou mais membros amputados. O enclave palestino tornou-se o lugar do mundo com mais menores de idade mutilados.
Em meio à escalada da violência, 22 dos 36 hospitais de Gaza fecharam as portas, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Trata-se de um somatório de problemas: ataques israelenses aos prontos-socorros sob acusações de que o Hamas usava os prédios como esconderijos, uma alegação rejeitada pelos militantes; sobrecarga da equipe médica e colapso do sistema de saúde do território, reflexo do elevado número de feridos; e falta de equipamentos, medicamentos e combustível, consequência do bloqueio parcial de Israel à entrada de ajuda humanitária. Os 14 hospitais restantes funcionam de forma limitada.
Tentar acessar suprimentos também se tornou perigoso. Quase 1.900 palestinos foram mortos enquanto buscavam ajuda desde 27 de maio, quando a GHF iniciou as operações em Gaza, indica o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH, na sigla em inglês). Apoiado por Israel e pelos Estados Unidos, o grupo era condenado pela ONU e por organizações humanitárias, que o acusam de transformar a fome em arma de guerra e de ineficácia. As críticas também abrangem o uso de seguranças armados nos centros de distribuição.