Fui diagnosticada com diabetes tipo 1 em 1950. Tinha 19 anos, morava no Rio de Janeiro e estava terminando o “científico”, o equivalente ao ensino médio hoje. Tudo começou quando passei mal de um jeito diferente. Fome intensa, sede, perda de peso, cansaço infinito. Fui a uma consulta e o médico achou que o problema eram as amígdalas. Operei e, em vez de melhorar, piorei. Fui piorando a ponto de entrar num estado próximo ao coma. Hoje a gente sabe que eu tinha um quadro grave, que podia levar à morte. Mas na época não se falava nisso. Ainda bem que outro médico desconfiou e pediu um exame de glicemia. Foi assim que confirmou o diabetes.
Naquele momento, até senti alívio. Achei que podia estar com tuberculose ou com “aquela doença”, como chamavam o câncer até então. Mas, ainda que parecesse menos assustador, as previsões para o diabetes não eram boas. Muitos médicos diziam que eu viveria no máximo dez anos. O fato é que fiquei um mês no hospital tomando insulina. Saí debilitada e não consegui prestar vestibular, mas me tornei professora um tempo depois.
O tratamento era rudimentar. Aplicava insulina com seringa de vidro, então precisava ferver a cada uso a agulha, grossa e dolorida. E ainda havia uma incerteza, porque, muitas vezes, faltava insulina no Brasil. Não tinha SUS, tudo era comprado por conta própria. Tinha gente que viajava para os Estados Unidos para trazer os frascos de insulina, que naquele tempo vinha de porco ou gado. Com o tempo, vieram muitas promessas de cura. Bom, até hoje aparecem aí. Eu tomei um chá milagroso, que era puro charlatanismo, e escrevi para uma teóloga americana que prometia cura pela oração, e ela me respondeu dizendo que, para o diabetes, “demora um pouco”. Demora mesmo. Já são 75 anos.
No dia a dia, não dava para monitorar a glicemia em casa e a gente sofria com as quedas bruscas de açúcar no sangue. Como os exames demoravam para ficar prontos, eu digo que, durante uns trinta anos, eu vivia no escuro e saía com um pacotinho de açúcar para o caso de ter hipoglicemia. Agora que cheguei aos 94 tudo é mais simples. Eu uso um sensor que manda os resultados da glicose direto para o meu celular (na foto) e o da minha filha. Mesmo assim, imprevistos acontecem. Apaguei devido a uma hipoglicemia recentemente, durante uma escala de voo. Mas isso não me impede de viajar e fazer minhas coisas. Autonomia e liberdade sempre foram preciosas para mim.
O que sempre me ajudou foi a alimentação. Entendi desde cedo que cuidar dela era essencial. E a minha irmã mais velha, nutricionista, teve um enorme papel nisso: foi ela que me mostrou a importância de controlar os carboidratos e de comer de forma simples e natural. O famoso prato colorido. Também não abro mão do movimento. Sou de Blumenau e cresci em Lages (SC), uma das cidades mais geladas do país. Mesmo no frio, ia de bicicleta à escola. Joguei vôlei, andei a cavalo… Hoje pedalo na minha bicicleta ergométrica e faço pilates. Brincam que tem jovem de 20 anos que não tem a minha agilidade para levantar.
Nunca temi envelhecer. Pelo contrário: me deram dez anos de vida, e sigo aqui. Há os percalços, claro. Já tenho a visão reduzida e preciso de aparelho auditivo. Mas, fora isso, nunca imaginei chegar tão bem aos 90. E está sendo uma delícia ver minha história virar um livro, porque sinto que estou oferecendo um pouco de esperança, alegria e coragem, especialmente para as crianças com diabetes. Elas me veem, me abraçam e dizem: “Então é possível, né?” Sim, é possível viver bem, desde que você aceite a condição e decida se cuidar. No fim, conviver com a doença me trouxe disciplina e me fez olhar para todas as áreas da minha vida — a física, a emocional, a espiritual. Para mim, o diabetes foi uma escola.
Carmen Wills em depoimento a Victória Ribeiro
Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2025, edição nº 2974