Quem cruza a fronteira terrestre da Polônia para a Ucrânia observando unicamente a paisagem dos Cárpatos não vê diferença alguma. A vegetação, a topografia e a arquitetura das casas são praticamente idênticas nos dois lados. Detalhes no território ucraniano, porém, saltam aos olhos já nos primeiros metros, estampando a guerra como pano de fundo da vida cotidiana. Em um posto de gasolina, cartazes anunciam uma campanha que destina parte da receita de alguns produtos ao esforço militar. Poucas ruas adiante surgem marcas visíveis de explosões e um pequeno memorial em homenagem aos socorristas, definidos como heróis. As cicatrizes do conflito são parte integrante da rotina brutal e exaustiva de sirenes de ataques aéreos, cortes de energia e incertezas sobre o futuro a que a população é submetida desde que, em fevereiro de 2022, o exército da Rússia, rasgando acordos internacionais e a rede de convivência tecida no pós-guerra, invadiu a nação vizinha e nela se instalou a ferro e fogo.

Os bombardeios aéreos acontecem desde o início da guerra, mas agora que a Rússia se apossou militarmente de uma fatia do território ucraniano (veja o mapa) e com as negociações de paz malparadas, eles se intensificaram em proporção nunca vista. Na noite do último dia 7, um número recorde de bombas — 810 drones e treze mísseis de cruzeiro — choveu sobre a Ucrânia. Um dos prédios atingidos foi o Gabinete de Ministros, que fica dentro do complexo fortemente protegido de edifícios governamentais na capital, Kiev, jamais alvejado. Passados três dias, ainda se podia sentir o cheiro de queimado e de fumaça em salas semidestruídas e ver pedaços de um míssil Iskander que falhou ao detonar. No 7º andar, acessível por escadas no prédio sem energia, um buraco de três metros expunha vigas e fios no chão. No escritório ao lado, a parede despedaçada dava vista para o Verkhovna Rada, o Legislativo unicameral do país, a menos de 1 quilômetro de distância. Pouco antes, em 28 de agosto, outro ataque arrasara sedes diplomáticas da União Europeia e do Reino Unido, em uma ofensiva que deixou 23 mortos em um condomínio residencial próximo. “Os mísseis eram cheios de estilhaços para maximizar os danos à população civil”, disse a VEJA o vice-embaixador da UE em Kiev, Gediminas Navickas, segurando pedaços dos dois projéteis russos lançados com cerca de vinte segundos de intervalo.
Empurradas pelos armamentos e pela assessoria militar que Estados Unidos e países europeus se apressaram em fornecer e por uma surpreendente capacidade de resistência diante do invasor infinitamente mais poderoso, as forças da Ucrânia conseguiram deter o avanço russo e até retomar algum território ocupado nos primeiros meses da guerra. Mas uma ofensiva malsucedida no ano passado permitiu à Rússia se reorganizar e intensificar os ataques — posição acelerada pelas idas e vindas da via diplomática desde que Donald Trump regressou à Casa Branca. O presidente dos Estados Unidos diz que sua paciência com Vladimir Putin, o neoczar russo, está acabando, mas exige que a Europa “pare de comprar petróleo russo” antes de impor novas sanções a Moscou. Aos ucranianos restou se adaptar como podem a um dia a dia de sobressaltos, entre o pavor e breves instantes de alívio. As manhãs, ao menos em pontos distantes do front bélico, têm trânsito engarrafado, crianças indo à escola e adultos ao trabalho, cafés cheios e até as onipresentes influencers gravando dancinhas para o TikTok. Essas cenas representam uma espécie de bolha de normalidade dentro de uma nação traumatizada, mas que resiste como pode.

Na mente dos ucranianos, viver é um ato de resistência feito de gestos como a pequena orquestra de cordas que, nos dias seguintes à chuva de drones de setembro, tocava músicas ao ar livre, na frente do Golden Gate — uma das portas antigas da cidade, onde os moradores resistiram ao cerco de Batu Khan, neto de Genghis Khan, há 800 anos. Ou ainda no minuto de silêncio nacional às 9 horas todos os dias. O ato foi criado em Lviv por Iryna Tsybukh, documentarista transformada em combatente, morta por um drone em maio do ano passado e homenageada como heroína pelo presidente Volodymyr Zelensky. “Paramos por um minuto para nos recompor”, diz a mãe de Iryna, Oksana, enquanto, ao lado de sua própria mãe, organiza presentes e velas deixados no túmulo da filha. A emoção é permanente.

As noites, no contraponto da sensação diurna, são de tensão. Aplicativos e grupos no Telegram avisam sobre ataques aéreos e a necessidade de seguir para bunkers. Bares e restaurantes começam a fechar antes do toque de recolher, de meia-noite às 5. A ordem é respeitada, com certa impaciência, pelos mais jovens — à beira do Rio Dnipro, que corta o país, a reportagem de VEJA topou no começo de uma noite com um grupo que bebia e conversava de forma despreocupada, sem dar muita bola para o chamado de voltar para casa. Vinte minutos a mais são aceitáveis, justificaram eles. Na madrugada do último dia 10, todas as áreas do país ficaram sob alerta vermelho — na capital se ouvia o som de drones e mísseis, como relâmpagos. No abrigo instalado no subsolo de um hotel de luxo, alguns tentavam dormir. A área não foi atingida e, depois de uma hora, a saída foi liberada.
Os sustos são frequentes e, ressalte-se, não só durante a madrugada. Em uma manhã ensolarada, Olena Zelenska, mulher do presidente, recebeu convidados para uma Cúpula de Primeiras-damas e Primeiros-cavalheiros sobre educação e infância, com a presença, entre outros, da alemã Elke Büdenbender e da finlandesa Suzanne Innes-Stubb. A certa altura da reunião, sirenes obrigaram os presentes a buscar abrigo. Em uma sala protegida, com paredes de tijolo aparente que remetem a uma antiga adega, Zelenska se sentou com os convidados em torno de uma larga mesa e seguiu conversando, como se nada houvesse. Cerca de quinze minutos depois, a cúpula foi retomada no salão original, com direito a uma entrada-surpresa de Zelensky, cercado de seguranças portando sacolas pretas para disfarçar as armas.
Nos últimos tempos, os bombardeios russos mais intensos carregam, além de dor e devastação, algum recado em momentos delicados da geopolítica, como mostra uma análise do Instituto para Estudo das Guerras, think tank sediado nos Estados Unidos. O ataque contra o Gabinete de Ministros, por exemplo, aconteceu pouco depois de chefes de Estado europeus se reunirem em Paris para considerar o envio de tropas para a Ucrânia após um eventual cessar-fogo ou acordo de paz — parte das chamadas “garantias de segurança” contra novas incursões russas. Moscou não aceita e avisou que pode vir a considerar as tropas europeias em território ucraniano como alvos legítimos de suas bombas.

Em outra mensagem pouco sutil, dezenove drones russos entraram no espaço aéreo da Polônia e foram abatidos — o primeiro envolvimento direto de um país da Otan, a principal aliança militar ocidental. Três dias mais tarde, outro país-membro, a Romênia, denunciou a presença de drones russos sobre seu território. Todos seriam, segundo autoridades de Belarus, aliada da Rússia e de onde saíram os explosivos, desvios involuntários de rota. O chanceler ucraniano Andrii Sybiha rebateu, ao definir os dois casos como uma “nova etapa” na guerra. “É um teste das nossas reações, da Otan e de nossos aliados, além de uma tentativa de espalhar pânico entre a população”, disse a VEJA.
Moscou sempre negou a intenção de alvejar civis, mas o número de vítimas aumenta significativamente. De janeiro a julho, a Rússia lançou mais de 20 000 drones iranianos Shahed contra a Ucrânia, cada um carregando 90 quilos de explosivos. “Apenas nos primeiros três meses depois da invasão houve mais mortos e feridos do que em julho deste ano”, diz Danielle Bell, diretora da Missão de Monitoramento de Direitos Humanos da ONU na Ucrânia, que contabilizava, desde o início do confronto até meados de setembro, 13 883 civis mortos, incluindo 726 crianças, e 35 548 feridos. “A TV mostra somente uma parte”, diz Oleksandr Sizionov, 38 anos, natural de Berdyansk, cidade da região de Zaporíjia, ocupada pela Rússia, e um dos primeiros voluntários a chegar a Mariupol, onde as forças armadas de Putin atingiram, em cena marcante, um teatro que servia de abrigo para civis. Traumatizado, Oleksandr não esquece a sensação de ver corpos de crianças nas ruas e as torturas que sofreu em quinze dias de cativeiro. “Esse conflito é um dos mais documentados da história. Só aqui temos 40 000 casos de crimes de guerra registrados”, diz Oleksandra Romantsova, diretora-executiva do Centro para as Liberdades Civis, organização que ganhou o Nobel da Paz em 2022.

Os relatos trágicos se repetem em todas as regiões. Valentina Sen foi alvejada por militares russos no jardim de sua casa, em Bucha, a cerca de 50 quilômetros de Kiev, em 25 de março de 2022, e seu corpo só foi recolhido uma semana depois, quando a cidade — onde estão registrados ao menos 700 crimes de guerra — foi libertada pelo exército ucraniano. “Cada nome é uma história da ocupação que precisa ser contada. São imagens que não saem da cabeça, um pesadelo horrível”, diz Dmytro Hapchenko, chefe de gabinete da prefeitura local, que perdeu dezesseis familiares. A igreja central da cidade, dedicada a Santo André, ainda exibe marcas de tiros nas paredes brancas. Nos fundos, em uma área descampada com vista para as casas onde muitas das vítimas moravam, Hapchenko aponta, em um memorial que ajudou a erguer, a repetição de sobrenomes entre os mortos, indício de famílias inteiras dizimadas.

Acuada, sem o apoio incondicional do governo Joe Biden e ao sabor do vaivém diplomático entre Trump e Putin, a Ucrânia amarga hoje condições desfavoráveis para uma eventual interrupção de hostilidades. Abrir mão de território, até recentemente concessão impensável, já começa a ser discutido. Nos termos que estão na mesa para uma eventual trégua, a Ucrânia cederia para a Rússia as partes ainda sob seu controle das províncias de Luhansk e Donetsk, que juntas formam a região do Donbass, farta em indústrias e minérios e objetivo declarado da invasão para supostamente “salvar” dissidentes pró-Moscou das garras do governo “nazista” de Kiev. Em troca, Putin devolveria pequenos bolsões que ocupa ao norte da Ucrânia e não mais avançaria sobre o solo inimigo, mantendo em seu poder também a Crimeia, que tomou em 2014, e uma porção considerável no Sul. Desalentada após mais de três anos de tensão contínua e perdas irreparáveis, a população ucraniana quer o fim do conflito: 69% são a favor de um ponto-final negociado o mais rápido possível, contra os apenas 24% que preferem lutar até a vitória.

Previsivelmente, o constante estado de guerra tem reflexo altamente negativo na economia. Um dia de confronto custa 220 milhões de dólares ao país, segundo cálculo do Ministério das Relações Exteriores. “Celeiro da Europa” antes de 2022, grande produtora de trigo, milho e outros cereais, a Ucrânia hoje tem minas em boa parte de seus campos agrícolas, impedindo o cultivo. “Só neste setor, o país perdeu 11 bilhões de dólares desde o início da invasão”, afirma Ihor Bezkaravainyi, vice-ministro da Economia responsável por operações de remoção de minas (a missão lhe é particularmente cara: veterano de guerra, perdeu uma das pernas em 2014 para um explosivo russo durante tomada da Crimeia). O PIB ucraniano está em queda desde o segundo trimestre do ano passado e o Banco Nacional reduziu a expectativa de crescimento neste ano de 3,1% para 2,1%. Soma-se aos problemas a falta de mão de obra — o déficit das empresas é de 3 milhões de trabalhadores. Mais: em 2024, 500 000 ucranianos deixaram o país, com a previsão de saída de outros 200 000 neste ano. A invasão russa solidificou um nacionalismo mais forte e disseminado do que jamais se viu na Ucrânia, mas, a julgar pelo ritmo da migração, não há amor à pátria e aparência de vida seminormal que resistam a um amanhã tão cheio de incertezas.
Publicado em VEJA de 19 de setembro de 2025, edição nº 2962