No Brasil, casas sem banheiro, sem energia elétrica ou sem água canalizada, com piso de terra ou de madeira aproveitada, são mais comuns do que se imagina e não estão só em favelas ou em periferias distantes dos grandes centros, não.
Estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) identificou que 16,3 milhões de famílias (39,3%), o equivalente a 40,9 milhões de pessoas, moram em domicílios com pelo menos um tipo de inadequação, como falta de banheiro (3%), de acesso a água canalizada (17%), esgotamento sanitário (22%) e energia elétrica (7%).
Para medir essas chamadas “inadequações habitacionais”, a pesquisa utilizou a base de dados referente a 2024 do CadÚnico, que reúne informações da população com renda per capita de até meio salário-mínimo ou até três salários-mínimos como renda familiar total.
Segundo o estudo, a precariedade habitacional tem gênero, cor e se distribui de forma diferente nos territórios. A maioria das famílias (78%) que sofrem com pelo menos um tipo de inadequação é chefiada por mulheres e três em cada quatro dessas mulheres são negras.
“Esse é o grande destaque”, diz Renato Balbim, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, que assina o estudo, em entrevista à coluna, chamando a atenção para a perversidade da exclusão. “Nos estados mais ricos do país, a precariedade habitacional se concentra ainda mais em domicílios chefiados por mulheres negras.”
De acordo com a pesquisa, o tipo mais prevalente de inadequação habitacional é a ausência de alternativa de esgotamento sanitário, que acomete mais de um quinto das famílias (21,8%) registradas no CadÚnico. Em seguida, vêm ausência de abastecimento de água por rede pública (17,1%), adensamento excessivo (8,3%), ausência de energia elétrica (7%), de água canalizada (6,9%) e de banheiro (3%), material de parede inadequado (2,6%) e material de piso inadequado (2,2%).
IMPACTO DA HABITAÇÃO NA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E NA SAÚDE
Na prática, o impacto dessas inadequações extrapola a casa, pois, segundo Balbim, o problema da habitação “transborda” para outras políticas públicas. “Costumamos dizer que a casa é a abertura para todas as demais políticas sociais”, resume.
Vi isso de perto nas minhas andanças pelo Brasil para produzir meus livros e reportagens. Há alguns anos, entrevistei uma criança que não ia para a escola porque a casa em que ela morava não tinha banheiro.
Alvo de bullying por parte dos amigos, por conta do mau cheiro, ela só voltou para a sala de aula quando a Secretaria Municipal de Educação identificou o problema e acionou diversas políticas públicas, de habitação à geração de renda, para que ela voltasse a estudar.
“A associação entre violência doméstica e a estrutura da habitação também é enorme”, comenta o pesquisador. “Uma das coisas que aprendi com esses anos de prática é que um dos maiores impactos de você construir um banheiro dentro de casa ou de fazer um banheiro decente, com porta, é que ele pode ser um último refúgio para as vítimas de violência”, diz ele, ressaltando que esse é um impacto real.
Outro impacto real – e muito importante – é na saúde. “A casa adoece e a família, também”, afirma. Inadequações habitacionais, como falta de ventilação e umidade, são responsáveis, segundo ele, por casos de tuberculose endêmica.
Os custos estimados pelo estudo do Ipea para eliminar as precariedades citadas na pesquisa é de R$ 273,6 bilhões. “Não é pouco, mas é similar aos subsídios para a construção de 5 milhões de unidades habitacionais no primeiro ciclo do Minha Casa, Minha Vida”, diz o especialista. Os ganhos, como vimos, vão muito além da melhoria da casa em si.
DESAFIOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Do antigo Banco Nacional de Habitação (BNH) ao Minha Casa, Minha Vida, há mais de 60 anos a política habitacional brasileira é focada na produção, pela indústria de construção civil, de unidades habitacionais novas para a “sonhada casa própria”. Uma política que, na prática, não dá conta das necessidades reais da população, traçadas pelo estudo.
Mais de 80% das moradias brasileiras foram erguidas por pedreiros, carpinteiros, diaristas, vizinhos solidários que constroem e ampliam suas casas conforme o tempo e a renda permitem, alerta o pesquisador. Uma realidade que colabora para esse cenário precário das habitações descrito pela pesquisa.
Nesse sentido, o anúncio do Programa Reforma Casa Brasil, que vai disponibilizar crédito para reformas, ampliações e adequações para melhoria das casas, foi, sem dúvida, um avanço. No entanto, a ausência de previsão no programa para assistência técnica de projetos e acompanhamento das reformas preocupa os especialistas.
“Uma reforma sem o conhecimento técnico pode prejudicar muito mais a habitação”, alerta Renato Balbim, lembrando que a assistência técnica para habitação de interesse social é garantida por lei há mais de 15 anos. “Toda a família com renda de até três salários-mínimos tem direito à assistência técnica gratuita de arquitetos, engenheiros, entre outros, para produzir ou qualificar a sua casa”, diz ele.
Para o especialista, a assistência técnica para reformas deve estar no bojo dos programas de habitação. Reformar, sem o devido acompanhamento técnico, pode, segundo ele, aprofundar as desigualdades e riscos.
Balbim chama a atenção ainda para a importância de enxergar e mobilizar organizações da sociedade civil (OSCs) que atuam nessa área para a implementação da nova política.
Pesquisas do Ipea e do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) identificaram 379 dessas OSCs espalhadas em periferias urbanas e áreas rurais. “São associações, cooperativas, coletivos e mutirões que há décadas constroem, reformam e projetam habitações populares”, diz ele.
Algumas delas, como Território do Bem, de Vitória, um projeto de assessoria técnica popular com metodologia própria de levantamento participativo de inadequações habitacionais, vão se apresentar hoje (25/11) no II Seminário Melhorias Habitacionais, promovido pela Ipea e instituições parceiras, em Brasília.
Moradia é um direito estabelecido na Constituição. Apesar disso, há ainda um longo caminho para garantir condições dignas de habitação para todos sem exceção.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.