counter Lorde desnuda corpo e alma em ‘Virgin’, seu álbum mais revelador – Forsething

Lorde desnuda corpo e alma em ‘Virgin’, seu álbum mais revelador

Um raio-X azulado desvela a existência dos ossos de um quadril, mas a imagem médica é sobreposta por elementos metálicos flutuantes — botões, a fivela de um cinto, o zíper de uma calça e, acima do cóccix, um dispositivo intrauterino, ou DIU, colocado naquele corpo como método contraceptivo e, portanto, facilitador do sexo sem consequências reprodutivas. A ferramenta, porém, também age contra os sintomas debilitantes do transtorno disfórico pré-menstrual e da síndrome do ovário policístico com os quais a neozelandesa Lorde passou a lidar após interromper o uso da pílula anticoncepcional. As contradições colocadas na imagem — dor e prazer ou ossos nus sob uma calça jeans — encapsulam o horizonte de Virgin, quarto álbum de estúdio da artista de 28 anos, que busca reduzir suas canções ao estado mais nu e cru que já ocuparam. A proposta é esquisita e espinhosa e vai na contramão do que é mais seguro dentro da música pop que a consagrou em 2013. Por isso mesmo, tem ensandecido fãs e agitado a internet.

Compositora desde sempre, Lorde construiu um público devoto graças a letras certeiras que a fizeram uma das vozes mais relevantes de sua geração. As batidas sintéticas elaboradas com o produtor Jack Antonoff em Melodrama (2017) e os sons metálicos de Pure Heroine (2013) fazem parte da receita, claro, mas são as palavras da artista que pastoreiam seu rebanho jovial. Logo, assim que as 11 faixas de Virgin foram disponibilizadas à meia-noite de 27 de junho, a elas foi dada a maior atenção. Dentre as revelações, está um distúrbio alimentar que a acompanhou durante anos e se agravou após o lançamento do disco Solar Power em 2021. “Me deixei ser sugada pela aritmética. Foi ótimo me despir, nova proporção de quadril a cintura” ela canta na primeira estrofe de Broken Glass. Noites embaladas em choro, dentes apodrecidos e cacos de vidro ilustram a batalha da cantora contra a própria forma entre frases grotescas e poéticas.

Mesmo assim, a sonoridade da canção passa longe da lamúria. Para se livrar das neuroses sobre a própria carne, Lorde também teve que reavaliar sua sexualidade e expressão de gênero, processo estimulado pelo término de um relacionamento de oito anos em 2023. Se mudou para Nova York e passou a investir no próprio “renascimento”, como diz em Hammer. Se encontrou — ou melhor, se perdeu — na vida urbana, nas pistas de dança e no sexo casual, todas elas expressões físicas e fisiológicas menos regradas do que a pregressa. As batidas elaboradas com Jim E. Stack, portanto, querem instigar movimento, passando pelo Drumb and Bass, sintetizadores e até ruídos de um ultrassom. Current Affairs, por exemplo, mescla melancolia e temor a imagens sexuais cruas — “você provou minha calcinha, soube que estávamos ferrados”, “ele cuspiu na minha boca como se dissesse uma reza” — e as sobrepõe ao reggae jamaicano explícito de Morning Love, do cantor Dexta Daps. Quando não são dançantes, as faixas fazem a pele formigar. A capella ela entoa Clearblue, na qual lida com um teste de gravidez após sexo sem proteção e reduz a expressão da artista a uma assombrosa voz distorcida que coloca o êxtase orgástico e a vulnerabilidade da dúvida na balança.

Continua após a publicidade

Tendo aprendido a olhar para si com menos rigor, a cantora também passou a afrouxar seu comprometimento à feminilidade. Ainda se identifica como mulher cisgênero, mas se sente confortável na androginia. “Tem dias que sou mulher, outros em que sou homem” canta em Hammer. Em Man of the Year, diz se abrir por inteiro e narra um cotidiano despreocupado e mais viril, no qual vai dormir de madrugada e se masturba de tarde, como o homem do ano. No clipe da canção, ela exibe os seios descobertos antes de amarrá-los com fita adesiva. No encarte do disco físico, uma foto tirada pela fotógrafa Talia Chetrit surpreendeu o público por expor a virilha da artista coberta apenas por calças transparentes de plástico. O escândalo faz pouco sentido quando comparado ao histórico de estrelas do rock. Enquanto o corpo de cantoras permanece oculto salvo raras exceções, a lista de homens que se apresentaram no palco com a roupa nova do rei inclui Iggy Pop e os Red Hot Chili Peppers.

Ainda assim, ela teme o ônus da evolução — afinal, “quem vai me amar assim”, pondera. A julgar pelo público massivo que atrai em suas aparições públicas, muita gente. Em 23 de abril, Lorde marcou encontro com seus fãs no Washington Square Park em Nova York. A multidão que se formou fez o serviço antiterrorismo ser acionado e ela foi impedida de subir ao palanque que havia preparado para apresentar o single What Was That. Depois de três horas, o imbróglio se resolveu e o resultado está no clipe da canção.

Continua após a publicidade

Mais de uma década após ter surgido como representante dos jovens desajustados, Lorde continua ímpar na conexão que tem ao seu público, isso porque soube converter seu status de profetisa geracional em metamorfose ambulante. A cada quatro anos, ela lança um novo trabalho com pouco em comum aos anteriores para além de refrões enérgicos e também apresenta ao mundo uma nova figura pública. Desta vez, é indiscreta, fluida e entregue a incertezas. Ela não mais anseia pela maturidade que virá nem é a promessa dos novos tempos, mas uma pessoa que viu os anos passarem sem que resoluções a transformassem na adulta estável que esperava ser. Aos 28 anos, ela sequer sabe definir o que é uma mulher crescida, como repete no refrão de GRWM. Seus milhões de ouvintes podem não ter sido alçados ao estrelato mundial aos 16 anos, mas inevitavelmente se enxergam na ânsia existencial e no intenso valor dramático que a artista agrega a lugares comuns — feito os ossos que todos têm dentro de si.

Acompanhe notícias e dicas culturais nos blogs a seguir:

  • Tela Plana para novidades da TV e do streaming
  • O Som e a Fúria sobre artistas e lançamentos musicais
  • Em Cartaz traz dicas de filmes no cinema e no streaming
  • Livros para notícias sobre literatura e mercado editorial
Publicidade

About admin