Em outubro de 2023, a cantora, compositora e escritora Letícia Pinheiro Novaes — a Letrux — levou um susto. Descobriu um tumor de ovário e, por semanas, aguardou a cirurgia de retirada com incerteza sobre o futuro que, poderia, no pior dos casos, lhe apresentar um câncer. Felizmente, a biópsia revelou à artista que a massa de tecido não era maligna. Não era, tampouco, benigna, mas sim exemplar de uma terceira categoria: borderline, quando a massa é maior do que o comum, mas não chega a efeitos destrutivos.
A ameaça limítrofe, assim como as reflexões provocadas pela experiência, inevitavelmente, agora permeiam sua obra artística, cujo primeiro exemplar inédito desde então acaba de chegar às livrarias e ao e-commerce. Brincadeiras à Parte (Planeta; R$ 49,90 ou R$ 39,90 em e-book), escrito antes e depois do diagnóstico, aglomera contos fictícios e observações reveladoras da autora. Para celebrar a novidade, Letrux participa de evento de lançamento nesta quinta-feira, 4, na Livraria da Travessa de Botafogo (RJ), seis dias antes de repetir a dose em São Paulo, na Megafauna. Em entrevista a VEJA, ela se abre sobre a própria saúde, detalha sua evolução enquanto escritora e destrincha inspirações que fomentaram as 176 páginas do livro, o terceiro que publica.
Quando anunciou a descoberta do tumor ao público, escreveu que a conversa em torno do assunto era muito silenciosa. Como foi o processo de identificar a doença e, depois, se conscientizar sobre ela? Eu sempre me cuidei, chego até a ser um pouco hipocondríaca, mas esses órgãos são misteriosos mesmo. Você faz um exame e está tudo OK e menos de seis meses depois, eis um tumor. Ainda descobri que mulheres que nunca tomaram pílula anticoncepcional e nunca engravidaram têm mais chances de desenvolver câncer de ovário — e eu fui essa pessoa. Achei essa informação muito impressionante, por isso que falei sobre esse tema ser silencioso. Eu fiz uma cirurgia espiritual antes da cirurgia no hospital. Tomei garrafadas de uma quilombola da Chapada dos Veadeiros e recebi reikis semanais. Eu acredito em tudo, no visível e no invisível. Quando cheguei no hospital, me senti mais protegida e preparada, acreditando que aquilo daria certo.
Das descobertas sobre a condição após o diagnóstico e tratamento, qual foi a maior surpresa? A maior surpresa é a obviedade da finitude. Achei que eu já tinha passado a fase da onipotência, jurei que era só na adolescência, mas não, percebi que fiquei assustada com a possibilidade da proximidade ao fim. São fases da vida pra você parar, repensar, se reorganizar emocionalmente. Também fiquei surpresa com o carinho de tanta gente. Recebi presentes, rezas e mensagens. Me senti amada, o que foi muito importante também.
Qual foi a sensação após a cirurgia de retirada do tumor e a descoberta de que ele era “borderline”,? Eu fui para a cirurgia sem saber como iria acordar: com os órgãos, ou sem, tendo que fazer quimioterapia ou não. Quando abri os olhos, ainda meio grogue pela anestesia, foi tudo meio turvo, confuso. Nem sabia dessa designação de tumor: borderline. Deu alívio pela não malignidade, mas preciso ficar atenta, tenho que fazer mais exames e em breve preciso decidir se vou querer fazer uma histerectomia ou não. Não é um tabu, mas ainda é um assunto delicado. Estou lendo, me informando e falando com especialistas sobre o que pode ser melhor, mas sem medo.
Brincadeiras à Parte é a primeira coletânea sua que chega ao público após o diagnóstico. O quanto a experiência afetou seu processo de criação? Eu comecei a escrever o livro antes do diagnóstico, mas sem dúvida esse acontecimento rasgou o processo da escrita, claro. A questão é que eu nunca pensei em congelar óvulos, pensava que era um dinheiro alto para algo que eu nem queria — mas eu não queria na época. Depois dos 40 anos, quis. Tive esse despertar. Infelizmente, meu corpo não obedeceu meu desejo em querer engravidar. Isso foi muito triste e tive que lidar com muitas questões, o que se percebe no livro de alguma maneira. É uma pena ser tão caro congelar, porque eu realmente recomendo às meninas mais novas. Eu sei que agora você não quer. Eu sei que o mundo é terrível, mas o mais fascinante da vida é que a gente muda de ideia, somos contraditórios o tempo todo e, talvez, quando a vontade bater, você vai ter aquele óvulo ali guardado. A biologia feminina é um pouco cruel. Pode ser que surjam evoluções e avanços, mas ainda é complicado. Tenho 43 anos, ando de skate, não tomo nenhum remédio para pressão ou glicose, nada disso. Sou ultra saudável, mas não consigo engravidar. Já um homem mais velho que eu, todo ferrado de saúde, fora de forma, ainda é capaz de ter filhos. A vida é injusta, mas estou aí, na análise, elaborando tudo isso. Escrever o livro me ajudou a externalizar algumas sensações que eu ainda nem tinha entendido ao certo. Escrever me ajuda a entender o que estou sentindo. Sempre fui assim, desde a alfabetização, desde que minha mãe me deu um diário e disse que ali eu poderia anotar o que eu quisesse.
O primeiro parágrafo de um livro é de suma importância para fisgar o leitor — o que Brincadeiras à Parte faz de cara com seus devaneios vulgares. De onde vem seu equilíbrio entre morbidez e humor, poesia e mordacidade? Minhas duas avós são vivas. Uma tem 95 anos, Marphisa, a outra tem 93, Régia. Quando posto fotos delas, algumas pessoas escrevem: “Que fofas”. Minhas avós não são nada fofas. Elas são mórbidas e hilárias. Falam frases sobre a morte com muita naturalidade, contam histórias da década de 1930 e 1940 e as comparam ao mundo atual com muita mordacidade. Sinto que peguei isso delas. Claro que como estudo astrologia, também sei que meu signo, capricórnio, é um signo tido como sério, mas não é bem assim. A gente tem um humor bem peculiar. Eu rio muito sozinha e de muita besteira. Não rio dos memes e sátiras mais populares, é verdade. Não estou tentando me colocar num lugar especial, nada disso. Até sofro de não entender algumas piadas mais comuns, mas não vejo graça em algumas imitações que fazem todo mundo passar mal de rir. Eu queria ser capaz, mas minha cabeça é mais esquisita mesmo, sempre tive contato ou com gente muito mais velha, ou com criança, que também é outro depósito de frases alucinadas e mordazes. Sou adulta, mas detesto ser. Acho que sou uma criança lisérgica presa numa mente nonagenária.
O conto Paciência é narrado por um eu lírico de 77 anos. Qual sua relação com o envelhecimento? Minha relação com o envelhecimento é de pura resiliência. Passo alguns cremes que me deixam com cara de 42, sendo que eu tenho 43. Tenho essa família longeva, que me inspira e me assusta. Já tive pena de quem pratica etarismo, agora sorrio misteriosamente e desejo uma longa vida para essas pessoas. Tenho muito tesão pela vida, sou bem tarada, então não me importo com os números, apesar que as marcas e alguns contratantes se importem. Posso perder dinheiro por isso, mas acho a vida preciosa demais pra jogar o jogo deles. Vou jogar o meu jogo. Vou ter a cara que eu quiser, vou andar de skate até quando eu puder. Às vezes caio num buraco e começo a reparar na minha falta de colágeno, mas aí ouço o podcast da Julia Louis-Dreyfus, no qual ela entrevista mulheres mais velhas que ela, chama Wiser than Me. É genial. Os episódios da Isabel Allende e da Isabella Rossellini são meus favoritos. Ouvi e pensei “taí, vou tentar ficar velha assim que nem elas”.
Como multiartista, quais ímpetos te levam à forma? Como sabe que uma ideia se transformará em música, outra será conto e uma terceira, poesia? Essa pergunta é difícil porque há um estágio inicial da ideia onde tudo pode acontecer. Anoto uma frase. Semanas ou meses depois, tanto posso começar a criar uma melodia para tal frase e ficar murmurando em casa, quanto posso começar a escrever um poema. Há casos especiais, quando a ideia vem como um raio, com a melodia. A palavra me guia e escolhe por mim. Durante muito tempo foi assim. Com o tempo, estou mais cheia de bifurcações, onde tudo pode acontecer. Estou domando as palavras aos poucos, mas sei que elas são selvagens.
Você recentemente apresentou o show de retrospectiva ‘20 Anos Alternativa’. No livro, também discorre bastante sobre lembranças do passado. A nostalgia faz parte do seu dia a dia? Sim, sou nostálgica. Já lutei contra de tanto ouvir que o que importa é agora, o futuro, o amanhã. Guardei para mim e para o meu mundo dos diários meu lado nostálgico, mas no meu primeiro livro, Zaralha – Abri Minha Pasta, lançado há 10 anos, foi onde fiz as pazes com a nostalgia, pois simplesmente mostro meus exercícios da alfabetização e tralhas guardadas no sótão da casa dos meus pais. Estamos num momento meio complicado. Capitalismo avassalador, guerras aniquilando povos. Não que isso não existisse, a história do mundo é horrível, mas falando por mim, pela minha área, acho que já tivemos melhores momentos. Há toda uma cena criativa, fértil e sagaz, mas não há incentivo para formação de público. As rádios tocam músicas de 40 anos atrás. E aí vamos ficando nichados. Estamos nas playlists, mas sem alcance popular. Ok, o nicho pode ser bom porque ele distribui mais a renda, não temos apenas uma cantora ou um cantor abocanhando tudo, mas não é assim que acontece. Eu salivo sonhando com a temporada de shows. Elis fazia isso, Bethânia também. Hoje em dia pra fazer apenas um show já é um sufoco, gastos surreais. Tenho medo da inteligência artificial, mas tomara que o ser humano volte a ser importante, de tanta IA que vamos ver. Tomara que as pessoas fiquem nostálgicas por algumas coisas legais do passado e que a gente resgate algumas práticas mais bacanas.
Uma das passagens finais do livro debate como manter o alto astral e a extravagância em meio aos julgamentos rápidos e duros da internet: “As pessoas querem a alegria positiva, não a alegria revolucionária”. Como definiria essa segunda categoria? A alegria positiva é efêmera, é aquele sorrisinho rápido curtindo um cachorrinho fofo. Eu também me utilizo e preciso dessa alegria, mas a revolucionária exige um mergulho onde não dá pé. Nas redes sociais, todo mundo quer ficar no raso. Ninguém quer repensar o próprio comportamento. Uma ou outra pessoa faz o desvio, se arrepende, pede desculpa, reavalia alguma resposta mal dada. Revolução não é fácil. Exige luta, exige empenho. Eu já fui muito mais participativa nas redes sociais, mas senti meu cérebro derreter, então voltei para minhas palavras cruzadas (eu faço nível médio, vovó Marphisa faz nível difícil). Ainda estou lá, mas não me envolvo mais em brigas ou elucubrações. Eu quero revolução e se o interlocutor só quer positividade, tenho preguiça de gastar meus devaneios. Viver não é só positivo, é muito mais negativo inclusive. A alegria revoluciona justamente por isso. É bem mais fácil ser negativo hoje em dia.
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