Cristina Kirchner é uma mulher carismática e poderosa que continua a ter o apoio de cerca de 20% da população, inclusive dos mais arrebatados que se reúnem em frente ao prédio onde ela cumpre prisão domiciliar por corrupção. Para estes, não adiantam provas: seus olhos estão fechados pelo fanatismo. Para os demais, é uma lição excepcional de como a corrupção atinge níveis tão absurdos nos países latino-americanos onde grassa essa praga, embalada pela crença de que as mães – ou pais – dos pobres estão acima de todas as acusações. Ou de que talvez roubem, mas façam.
Nada disso, evidentemente, é verdade. Cristina está em prisão domiciliar e enfrentando mais uma vez a justiça no chamado “processo dos cadernos” porque nem a fartura de benefícios que proporcionou conseguiu mascarar o tremendo fracasso econômico de sua gestão e de seu patético avatar, Alberto Fernández.
O nome do processo se deve a um motivo simples, mas quase inacreditável. Existem, literalmente, cadernos da corrupção. Foram escritos pelo motorista Óscar Centeno, que prestava serviços a Roberto Baratta, funcionário do Ministério do Planejamento e operador direto do dinheiro despejado em apartamentos do casal Kirchner. Durante anos, ele testemunhou – e anotou – o dinheiro enviado em sacolas por donos de construtoras que mandavam comissões para ganhar concorrências públicas, o método universal de enriquecimento de políticos e partidos. Começou durante a presidência de Néstor Kirchner e continuou com a de sua mulher.
Estava tudo lá: horários, endereços, quantias e relações entre os compradores e os comprados. Centeno disse que havia queimado os cadernos, mas a Justiça tem em seu poder pelo menos seis deles. O motorista havia deixado o roteiro da corrupção com um amigo, ex-policial, pensando em se proteger. O destinatário se aproximou de um repórter do jornal La Nación. O caso explodiu, com detalhes que leitores brasileiros entendem rapidamente.
COFRES EM CASA
As operações, por assim dizer, da central de roubalheira ocorriam no âmbito do Ministério do Planejamento. Vários “arrependidos”, como são chamados os delatores premiados, reforçaram as múltiplas acusações. Cristina Kirchner, que cumpre pena por subornos recebidos em outro caso de corrupção em obras públicas, o chamado “processo das obras viárias”, “tomava posse final da maioria do dinheiro dado por beneficiados” por contratos vantajosos.
Um dos destinos mais frequentes das malas e sacolas de dinheiro era seu apartamento na rua Uruguai, no bairro de Recoleta (ela cumpre prisão domiciliar em outro imóvel, na rua São José). No total, foram relatados 128 “episódios” de pagamentos ilícitos. Um dos colaboradores da justiça, o empresário Claudio Uberti, disse que uma vez subiu ao apartamento dos Kirchner e viu cerca de vinte malas com dinheiro.
Na casa na província de Santa Cruz, o casal Kirchner havia providenciado cofres de grandes dimensões para guardar as propinas. Num único pagamento, dos tantos registrados por Centeno, foram entregues 500 mil dólares.
Mesmo para quem está escolado nos mecanismos da corrupção – tão parecidos, embora toscos nos caso dos Kirchner, pois corrupto profissional geralmente não encosta a mão no dinheiro -, o caso impressiona.
CORRENTES INTERNAS
Ele também ajuda a entender não só por que Javier Milei foi eleito presidente como seu partido alcançou uma grande vitória nas últimas eleições legislativas e hoje é o maior do Congresso argentino, com três parlamentares a mais do que os peronistas, tradicionalmente a mais poderosa força política do país. Hoje, para variar, o peronismo está dividido em correntes internas que se odeiam, sendo que, entre algumas delas, muitos responsabilizam Cristina pelo fiasco eleitoral.
A essa altura, já sabemos todos como a Argentina pode dar guinadas bruscas, mas a situação atual é curiosa. Cristina Kirchner está em prisão domiciliar, pode pegar mais uma condenação brava no processo dos cadernos e não tem tido capacidade de controlar os rachas internos.
Milei, que tantos davam por acabado e esperavam ver naufragar na eleição para o Congresso, está aprendendo a fazer política e demonstrou habilidade em criar alianças. Sua irmã, Karina, a “boleira”, como a chamam os inimigos, foi a estrategista da vitória e está mais firme do que nunca.
Hoje, Milei convocará sessões extraordinárias do Congresso para discutir reformas importantíssimas, incluindo no âmbito fiscal, trabalhista e penal. A revolução mileinarista continua. Tudo, claro, pode mudar, subitamente. A situação do câmbio é a mais premente de todas, mas a exposição da montanha de sujeiras da era Kirchner ajuda o governo.
Para livrar-se das punições decididas dentro dos princípios do estado de direito, sem nenhuma arbitrariedade ou abuso de poder, com provas que seriam aceitáveis em qualquer tribunal legítimo, sem crimes inventados para justificar condenações absurdas, Cristina Kirchner tem que contar com uma mudança política e uma eventual anistia. Como ironia adicional, é um modesto motorista quem pregou vários cravos a mais no caixão político da mulher que já foi chamada de rainha Cristina e criou uma corrente própria, o cristianismo. Façam as ilações que quiserem.