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Katia Lund a VEJA: “A complexidade de uma história me interessa muito”

A cineasta Katia Lund, diretora do filme Cidade de Deus (2002) junto com Fernando Meirelles, dirigiu a série documental A Mulher da Casa Abandonada, recém-lançada no Prime Video, que narra a história de Hilda, uma mulher negra que foi escravizada nos Estados Unidos por Margarida Bonetti, mulher branca que fugiu para o Brasil e hoje vive em uma mansão decadente em Higienópolis. A VEJA, Katia e a roteirista Mariana Paiva falaram sobre a produção de três episódios que ocupa o top 10 de conteúdos mais vistos da plataforma de streaming da Amazon. 

Confira a entrevista na íntegra:

Katia, você já dirigiu projetos impactantes, como Cidade de Deus (2002) e também Notícias de uma Guerra Particular (1999), o que a atraiu a esse projeto de transformar o podcast A Mulher da Casa Abandonada em uma série documental do Prime Video? Eu acho que é uma história com muitos níveis de leitura. Ele pode ser uma história de puro true crime, como pode ser uma história internacional, ou íntima. E também pode ser só uma história que é uma metáfora do Brasil. Então, essa complexidade me interessou muito.

Mariana, sabendo dessa complexidade que a história tem, como foi transformá-la em um roteiro que contasse o caso, mas sem revitimizar a Hilda, a empregada que foi escravizada pela Margarida Bonetti? Tínhamos na sala de roteiro uma mistura muito boa, nós éramos quatro. E a gente sempre debatia muito isso, da Hilda não ficar nessa posição de vítima o tempo todo, apesar de ela ter sido vítima de um crime, queríamos ressignificar isso. Até porque, para uma mulher negra, estar nessa posição de trabalho análogo à escravidão é complicado. Imagina você viver nos Estados Unidos, não falar inglês, nem espanhol, tentar contar para as pessoas o que está acontecendo ali entre quatro paredes e não conseguir. Nos prendemos muito à visão da Hilda, que, apesar de tudo, é uma mulher alegre, que ressignifica todos os traumas através da alegria e das artes. Ela é artista plástica, pinta quadros lindos. 

No que a série se diferencia do podcast? Mariana: Uma coisa que não tinha no podcast é justamente o lado da Hilda e o fato de poder mostrar as condições absurdas em que ela vivia. Porque muitas pessoas ficavam intrigadas, pensando: “Ah, mas ela morou nessa casa e tinha comida, tinha tudo”. Você não consegue ver o crime, a violência física, e na série a gente retrata tudo isso. A série consegue mostrar os aspectos da violência.

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Os cenários da casa nos Estados Unidos parecem bem reais, dão uma sensação de imersão naquele pesadelo que a vítima viveu. Como foi construir essa simulação? Mariana: Sim, essas cenas evocativas foram muito importantes para dar esse impacto, para a violência parecer que é real. Usamos uma atriz muito parecida com a Hilda, e ela conseguiu também pegar os trejeitos da Hilda. Nós quisemos ser muito fiéis às duas casas como personagem, tanto a casa de Higienópolis, como a dos Estados Unidos. A casa da Margarida lá fora, inclusive, era a única a ter um local para uma empregada viver, e a vizinhança até achava estranho isso. As casas são personagens também. 

Katia, os depoimentos da Hilda são inéditos. Como foi conduzir as entrevistas com ela para a série? Katia: Eu estive presente em todas as entrevistas com ela porque eu que fui lá construir uma relação de confiança com ela, um relacionamento mesmo, de responsabilidade. Ela confiou em mim, assinou um contrato e isso é muito importante. E fizemos muitas entrevistas, foi uma relação construída ao longo de um ano ou mais. A Hilda é o grande lance da série, toda vez que nos perdíamos durante o processo, era ela quem abria o caminho. Porque todas as pessoas em volta dessa história, as mais importantes, só aceitaram falar para poder ajudar a Hilda, para ajudá-la a contar a história dela. Então, na verdade, tínhamos o desafio de fazer com que a complexidade dessa pessoa, a humanidade dela também viesse à tona. Porque ela tem uma personalidade deliciosa, ela é muito engraçada, ela é debochada, ela é uma artista, realmente, assim, ela conta muito bem a história. E eu nunca imaginei isso. 

Por que? Katia: O dia que eu fui bater na porta dela, eu não sabia se era realmente o endereço dela ou não. Ela abriu a porta, me olhou, eu disse: “Ah, somos brasileiros, podemos falar contigo?” Ela: “Entra aí, pode entrar. Fazer o quê, né?”. A partir dali ela já quebrou tudo. E todo mundo se apaixona por ela, a equipe inteira se apaixonou, porque ela é muito espontânea, muito verdadeira. Brincamos com ela o tempo todo. E eu senti que meu lugar era o de dar o espaço para ouvi-la, porque ela queria muito falar. Acho que ela estava em um momento da vida que ela precisava falar. Então fiquei muito grata pela confiança que ela teve em mim. Assim como a cuidadora dela, a Maria Helena. 

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Quando o podcast foi lançado, o público teve diversas reações. Alguns romantizaram e até idolatravam a Margarida, enquanto outros, após descobrirem os crimes dela, até protestaram na frente da casa. Como fizeram para achar o equilíbrio entre contar essa história, mas não fazer dela um novo espetáculo de tragédia? Katia: Eu acho que como a pesquisa e a investigação foram muito profundas – nós demoramos um ano e meio para apurar todo, tivemos acesso a todas as transcrições do julgamento dos Estados Unidos, todas as matérias, testemunhas, os médicos, os advogados, tudo que está na série está embasado em documentação. Os cenários também são fiéis às pesquisa. Fizemos de tudo para equilibrar, porque o podcast tem uma aura de fofoca, de muitos vizinhos falando o que sabem, e isso dá espaço para muita especulação. E no nosso caso, a gente foi pegando tudo o que a Margarida falou, e a gente deu o mesmo tempo de resposta para Hilda. Então é um ping-pong, vai dar Margarida para Hilda, da Margarida para Hilda. E aí o espectador pode decidir em quem ele vai acreditar. Foi isso que a gente tentou fazer, ir para um lado muito mais documental e investigativo e menos para o sensacionalismo.

Mariana: Antes mesmo de começar o roteiro de fato, tivemos muitas reuniões e participamos da pesquisa. Fomos montar a árvore genealógica da Margarida para entender de onde vem a família dela, que é neta do Barão de Bocaina, para depois construir a realidade dos fatos, porque é uma personagem que representa muito do Brasil. Margarida cometeu um crime que deveria ser hediondo, mas que no Brasil ele é normalizado porque é um país escravocrata. A história do Brasil tem muito a ver com a construção dessa série. E a Katia foi instigando a gente, questionando passando sobre quem disse tal coisa, como tal crime estava na legislação, então fizemos um trabalho de detetive. E ficamos um pouco assustadas com a repercussão do podcast porque muitos entrevistados nem sabiam quais crimes a Margarida tinha cometido. A idolatravam porque achavam que era só uma mulher  excêntrica com uma pomada branca no rosto e que vivia numa casa caindo aos pedaços num bairro nobre. Então, quisemos aprofundar esses crimes na série. 

Katia: No começo, começamos nossa pesquisa pelo Brasil e tivemos dificuldade de falar com as pessoas que participaram do podcast porque virou um auê tão grande. Pensamos que tínhamos que contar essa história através de jornalistas, especialistas, mas fomos ficando cada vez mais longe da história. Aí fomos para os Estados Unidos. Mas uma coisa que eu sempre falava com a sala de roteiro é que assim, para mim, um documentário bom é um documentário que escuta as pessoas que viveram aquela história. Não gente que ouviu ou escreveu a respeito. E graças a Deus conseguimos personagens diretamente ligados ao caso. Fomos eliminando todos os especialistas, os jornalistas, todo mundo que era periférico e só os players mesmo falaram, e eles trazem mais a emoção do momento, fica mais fácil para o espectador se sentir lá. 

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Por que acham que esse caso reverberou tanto com as pessoas? Mariana: Acho que tem muitas camadas. Tinha gente muito interessada na história porque era uma mulher que ninguém sabia de onde veio morando numa casa que está caindo aos pedaços em Higienópolis. Muitos tinham dó dela, achavam que ela tinha sido abandonada. E outras avisaram que ela era criminosa, que fugiu dos EUA. Para mim, quando eu ouvi o podcast, eu fiquei interessadíssima em saber porque a Margarida não teve nenhum tipo de punição no Brasil. 

Katia: Acho que o Chico construiu um mistério fascinante para as pessoas. Essa história não é sobre um corpo no chão. E não é sobre uma vítima. É sobre uma mulher que foi vítima de um crime, mas que virou o jogo, mesmo sem dinheiro, sem documentação, que não falava inglês, estava isolada. A Hilda ficou traumatizada, tem coisas que ela nunca vai curar, mas ela preservou o afeto e a dignidade dela, preservou a cultura, o amor, a capacidade de construir uma nova vida e ela tem uma vida cheia de amigos nos Estados Unidos. E isso é bem diferente do que aconteceu com a Margarida, que está no Brasil. Apesar de ela estar livre, morando na casa dela, ela está isolada. Quantos amigos ela tem? Ela está escondida. Apesar de ela nunca ter sido presa, ela mesma se colocou numa prisão. 

A Mulher da Casa Abandonada é baseada no podcast homônimo criado por Chico Felitti.

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