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‘Já falamos em cura funcional’, diz brasileira que liderou estudo com droga inovadora para o câncer

Um novo capítulo na história do tratamento do mieloma múltiplo, o segundo tipo de câncer no sangue mais prevalente no mundo, foi escrito no Brasil. Mais precisamente, pelas mãos de uma médica brasileira. 

A hematologista Vania Hungria liderou a pesquisa internacional que demonstrou a eficácia de uma nova classe de drogas para a doença. O estudo, publicado no concorrido periódico The New England Journal of Medicine, somou evidências a favor da aprovação do anticorpo conjugado belantamabe mafotodina, recém-ocorrida com a chancela da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

“Atuo com pacientes com mieloma múltiplo há 41 anos. Quando comecei, o máximo que podíamos fazer por eles era um tratamento praticamente paliativo, que dava uma sobrevida de dois ou três anos”, recorda a médica e professora da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

“Hoje, com as novas terapias, não falamos em cura total, mas já podemos falar em cura funcional. Temos pacientes com mais de dez, 15 anos sem o retorno da doença”, diz a especialista e cofundadora da International Myeloma Foundation (IMF) em evento realizado pela farmacêutica GSK, responsável pelo desenvolvimento da medicação batizada de Blenrep.

Hungria afirmou que, por ser mulher e latino-americana, teve de superar barreiras extras para coordenar o ensaio clínico que comprovou os efeitos do produto. “Mas conseguimos, num esforço coletivo que colocou o Brasil como o principal país recrutador do estudo e mostrou que podemos fazer pesquisa clínica de qualidade por aqui”.

A médica brasileira e líder do estudo internacional Vania Hungria
A médica brasileira e líder do estudo internacional Vania HungriaFoto: IMF/Reprodução

A doença na mira

Estima-se que um em cada dez casos de câncer no sangue – grupo de doenças ao qual também pertencem as leucemias e linfomas – seja um mieloma múltiplo. 

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O problema atinge cerca de quatro em cada 10 mil pessoas, sendo mais comum na faixa dos 65 aos 70 anos e um pouco mais frequente entre homens.

Ainda não se sabe totalmente por que a doença surge – desconfia-se de fatores genéticos e ambientais envolvidos -, mas os cientistas já identificaram de onde ela brota. Na medula óssea – o recheio dos ossos, popularmente chamado de tutano -, há uma proliferação exacerbada de um tipo de célula conhecido como plasmócito.

Essas células são responsáveis pela produção de anticorpos e, fora de controle, se proliferam e passam a agredir algumas partes do organismo. “Entre 70 e 90% dos pacientes apresentam manifestações ósseas, porque a doença ataca os ossos, especialmente regiões como crânio, coluna vertebral e quadril”, explica Vania Hungria.

Uma das queixas mais usuais entre pessoas diagnosticadas com mieloma múltiplo é a dor nas costas.

Hoje uma das lideranças da IMF em São Paulo, Aílton Santana descobriu a doença em 2020 após quase oito meses de um incômodo persistente na lombar e uma peregrinação entre médicos. Superando o problema com um transplante de medula, atualmente ele atua em grupos de apoio a pacientes e cuidadores e na conscientização do público e de profissionais de saúde.

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Outros sintomas e sinais podem levantar a suspeita do mieloma múltiplo. Seis em cada dez pacientes, por exemplo, apresentam anemia. “Além disso, 25% das pessoas ficam com níveis elevados de cálcio no sangue e 20% desenvolvem doenças renais”, expõe Hungria. Presença de sangue mais viscoso e maior suscetibilidade a infecções são outras características do quadro.

“Há diversos aspectos clínicos que podem levantar a hipótese de um mieloma múltiplo entre os médicos, mas o fato é que ainda precisamos sensibilizar outras especialidades, como ortopedistas, clínicos gerais e geriatras, a respeito do problema”, diz a hematologista.

“A demora no diagnóstico ainda é um dos maiores desafios no Brasil”, enfatiza Christine Battistini, presidente do braço latino-americano da IMF, ela mesma engajada com a causa a partir do momento em que a mãe teve a doença, há mais de 20 anos.

A medicina, contudo, dispõe de ferramentas que ajudam a encurtar o caminho até o diagnóstico e aumentar as chances de sucesso na terapia. “Temos um exame de sangue simples, a eletroforese de proteínas, que pode nos dar uma suspeita diagnóstica, só que às vezes ele acaba esquecido”, nota Hungria.

A comprovação é realizada com outros exames, entre eles uma biópsia de medula.

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A evolução no tratamento

O arsenal terapêutico contra o mieloma múltiplo avançou significativamente nas últimas décadas. Enquanto nos anos 1960 os médicos só tinham à mão opções como os corticosteroides, a partir dos anos 2000 novas classes de drogas entraram em cena, ampliando não só o leque de armas como também as chances de sobrevivência dos pacientes.

Fora o transplante de medula, a partir dos anos 2010 começaram a chegar os anticorpos monoclonais e, desde então, estrearam outras famílias de medicamentos que podem ser prescritas pelos especialistas.

É nesse contexto que ganha aval da Anvisa o anticorpo conjugado belantamabe mafotodina, da GSK. “Ele combina um anticorpo a uma droga tóxica para as células tumorais”, destrincha Vania Hungria. Ou seja, o anticorpo garante que a substância capaz de destruir as unidades do câncer chegue até o local da doença e despeje ali seu armamento.

O conjugado de belantamabe mafotodina, comercializado como Blenrep, foi validado em uma série de ensaios clínicos. Um dos principais, o DREAMM-7, capitaneado pela hematologista brasileira, testou a inclusão da droga a um esquema com bortezomibe (um quimioterápico) e dexametasona (um tipo de corticoide) em comparação com o tratamento baseado no anticorpo monoclonal daratumumabe junto a bortezomibe e dexametasona.

O trabalho recrutou 494 pacientes de 20 países que apresentaram retorno ou resposta refratária da doença após uma primeira intervenção, e eles foram divididos aleatoriamente em um desses dois braços: o do novo medicamento e o do tratamento-padrão.

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O estudo, com participantes do Brasil, da Coreia do Sul, dos Estados Unidos, da Grécia e de outras nações, constatou que a nova terapia quase triplicou a sobrevida livre de progressão da doença: 36 meses, em média, com o mieloma domado no grupo do Blenrep ante 13 meses na ala com o esquema convencional.

Também concluiu que a medicação de última geração propiciou ganho de sobrevida global significativa, com redução de 42% no risco de morrer durante o período avaliado. No cômputo, pacientes tratados com o anticorpo conjugado apresentaram uma taxa de sobrevida de 84 meses, diante de 51 meses daqueles que utilizaram as medicações usuais. 

A pesquisa mostrou que o grupo submetido ao novo tratamento encarou uma maior taxa de descontinuação devido a efeitos adversos, sobretudo alterações oculares. Mas, no geral, esses eventos se mostraram controláveis e o índice de qualidade de vida não diferiu expressivamente entre os grupos. “Para esse tipo de tratamento, os pacientes devem passar antes por uma avaliação com o oftalmologista e as alterações oculares tendem a ser reversíveis”, pontua Hungria.

Em busca da cura

Outros estudos testaram o novo anticorpo aliado a outras medicações e uma pesquisa em curso buscará responder se o produto da GSK pode se tornar uma primeira linha de tratamento – isto é, ser prescrito a pacientes que ainda não passaram por outras terapias ou não responderam a elas.

Hoje, a depender do estágio e das características do paciente e da doença, os especialistas podem recorrer a drogas que vão de imunomoduladores a anticorpos monoclonais, além do transplante de medula e da terapia CAR-T.

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A aprovação da Anvisa marca a ampliação de um arsenal farmacológico que, segundo Hungria, hoje torna possível o que se chama de “cura funcional” do mieloma múltiplo.

O que seria isso? “Ela se refere a pacientes que obtiveram uma resposta profunda, duradoura e sem carga residual da doença por mais de cinco anos”, responde a hematologista.

A professora da Santa Casa esclarece que, a rigor, o conceito de cura remete a controlar ou zerar a doença após concluir um tratamento. Atualmente, no caso do mieloma múltiplo, os pacientes mantêm o câncer sob controle utilizando medicações de forma contínua – a exemplo de um problema crônico de saúde.

“O que buscamos responder agora é quando esses pacientes com a doença controlada podem parar o tratamento”, diz Hungria, que revelou que, em 2026, os maiores especialistas da área se reunirão para debater questões como essa e delimitar o conceito de cura no contexto do mieloma múltiplo.

“Com as novas terapias, não estamos mais falando só de tempo ou de sobrevida, mas de mais tempo com mais qualidade de vida”, destaca Battistini.

Esse é um trunfo para os pacientes – e há dedos de uma médica brasileira por trás dele.

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