Para muitas minorias religiosas atacadas, entre as quais o caso dos drusos se tornou uma crise internacional, não há dúvida: a Al Qaeda está no poder na Síria e o líder que assumiu o comando, depois da súbita queda do regime de Bashar Assad, está apenas enganando os tolos, vestindo terno e gravata para apresentar uma imagem de modernidade.
Entre os enganados, inclui-se o presidente Donald Trump, que recebeu o líder sírio, Ahmed Al-Sharaa, elogiou-o como um jovem bem apessoado e deu o que os vizinhos do Golfo mais queriam: levantamento de sanções que permitem a governos e empresários árabes com os bolsos forrados de petrodólares investir no fenomenal negócio de reconstrução do país, destroçado por dez anos de guerra civil.
Foi uma guinada tremenda e com o apoio forte de dois dirigentes com quem Trump quer manter boas relações, o príncipe saudita Mohammed Bin Salman e o presidente turco Recep Erdogan. A ideia é manter a Síria nesse espaço de relacionamento com os Estados Unidos, uma jogada geopoliticamente importante, mas que não leva em consideração certas realidades da vida.
Sírios que acompanham com preocupação as mudanças que estão sendo introduzidas no país a partir de dezembro do ano passado, quando o regime Assad caiu de podre, dizem que Sharaa apenas disfarça as convicções islamistas. Dão como exemplo as declarações sucessivas de garantias para as minorias – e são muitas na Síria, como cristãos cuja origem remete ao alvorecer da nova religião há quase dois mil anos; drusos e alauítas, ramos que saíram do Islã xiita e se tornaram religiões sincréticas; curdos que são da maioria sunita, mas não da etnia árabe.
JIHAD PERMANENTE
Quando acontecem confrontos locais, como ocorreu com a comunidade drusa, quando um incidente com beduínos desencadeou uma onda de chacinas mútuas, Sharaa promete assumir o controle e manda suas forças, ex-rebeldes que se tornaram o braço armado do regime. In loco, estas forças aderem à repressão e começam a praticar atrocidades. Já aconteceu com alauítas, cristãos e agora com drusos.
As minorias religiosas são vistas como aliadas do regime deposto, especialmente os alauítas, a seita à qual pertenciam os Assad e figurões que implantaram um indescritível regime de terror no país. Pelas leis tribais, merecem agora ser oprimidas. Não há terno e gravata que mude isso.
Também em Israel há líderes, geralmente da direita, que veem na Síria uma ameaça de islamistas radicais, dispostos apenas a esperar pela recomposição de suas forças para reavivar a jihad permanente inspirada pelo fanatismo religioso, com o estado judeu bem no centro dessa luta.
Com todos os horrores praticados durante a guerra civil, o regime Assad tinha uma origem modernizadora e laica. Sírios de diversas tendências podiam viver uma vida ao modo ocidental, principalmente nas grandes cidades. Alguns, apreciavam festas e baladas com vários aditivos.
BURQUÍNI OBRIGATÓRIO
Esse mundo está acabando e há sinais de grande importância simbólica. No começo do mês passado, as novas autoridades decretaram que as mulheres precisam usar “roupas de banho mais modestas”, nas praias ou piscinas públicas. O decreto cita especificamente “o burquíni ou roupas que cubram mais o corpo”
Lembrando: burquíni é uma palavra que mistura burca e biquíni, embora tenda mais ao primeiro elemento. A roupa de malha grossa cobre todo o corpo, com calças usadas com uma túnica por cima, de mangas compridas e capuz emendado para cobrir os cabelos.
Pelo decreto, os homens têm que usar camiseta quando saem do mar. Roupas de banho “ao estilo ocidental”, só nas piscinas de hotéis e resorts.
Sírios que viveram a vida toda “ao estilo ocidental” também antecipam uma próxima proibição ao consumo de bebida alcoólica, banida pelos preceitos muçulmanos. Tradicionalmente, como no Iraque e em territórios palestinos, os bares e baladas pertencem – ou pertenciam – a sírios cristãos, para os quais não há proscrições religiosas. Muitos já dizem estar sendo assediados pelos novos representantes da ordem, na verdade militantes de barba comprida que até muito recentemente eram da mesma linha que a Al Qaeda.
“A questão das bebidas alcoólica não é um detalhe secundário. Ao contrário, está no centro das discussões sobre a natureza do futuro Estado sírio”, escreveu Ammar Abdulhamid, com credenciais de conhecido militante da oposição ao regime derrubado.
“Historicamente, o consumo de álcool no Oriente Médio, incluindo durante o domínio islâmico, era uma faceta aceita da vida diária, com as onipresentes tavernas. Mas os movimentos islamistas modernos instrumentalizaram a proibição da bebida e regras restritivas sobre o modo de vestir como símbolos de superioridade moral e de ‘autenticidade’.”
‘BIBI É LOUCO’
É exatamente o modelo que o novo regime está seguindo. Poderia uma Síria mais religiosa mesmo assim entrar num futuro acordão, normalizando relações com Israel quando houver uma saída aceitável para a situação palestina e acertando os ponteiros com a Arábia Saudita?
As possibilidades vão parecendo cada vez mais escassas, embora muitos países europeus também sonhem com uma normalização para que retornem à Síria os milhões de refugiados – a Dinamarca chegou a oferecer 27 mil euros a cada um deles em suas fronteiras, mas apenas 120 pessoas aceitaram.
A eclosão de violência contra os drusos levou Israel, que tem um acordo tácito de retaliação com sua própria minoria dessa religião misteriosa, cujos segredos são guardados sob risco de pena de morte para quem revelá-los, a bombardear até o QG militar em Damasco. Trump foi pego de surpresa, ficou furioso e liberou assessores para detonar o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
“Bibi agiu como um louco. Ele bombardeia todo mundo o tempo todo”, disse uma dessas fontes ao site Axios, indicando que as tensões entre Netanyahu e Trump são mais fortes do que parecem.
Trump quer um acordo de paz para o Oriente Médio e quer ficar bem com seus aliados árabes. Já disse quer não pretende impor padrões ocidentais de democracia ou comportamento a esses aliados, para alegria dos locais. Mas a realidade, como sempre, é mais complicada. Mesmo com um líder jovem e bonitão, como disse Trump, a Síria pode só estar esperando o momento certo para ir para o lado oposto.
Os integrantes de minorias sírias que já saíram ou pensam em sair da Síria são um indício de que as coisas podem, infelizmente, pender para esse lado. Algumas mulheres alauítas relataram a jornalistas ocidentais que foram capturadas, submetidas a estupro e vendidas como escravas sexuais a figurões jihadistas, uma prática primitiva endossada pelos fanáticos religiosos. Dá para pensar em continuar nesse lugar?