No debate sobre desigualdade no Brasil, é comum voltar os olhos para a má distribuição de renda ou a concentração de patrimônio. No entanto, há uma engrenagem silenciosa que acentua essas distorções: o sistema tributário. Mais especificamente, a forma como o Brasil arrecada seus tributos — majoritariamente por meio de impostos indiretos — acaba onerando proporcionalmente mais os mais pobres, tornando o sistema notoriamente regressivo.
A regressividade de um sistema tributário se manifesta quando os contribuintes de menor renda comprometem uma parcela maior de seus ganhos com tributos do que os mais ricos. É exatamente isso que ocorre no Brasil. Dados consolidados pelo Tesouro Nacional mostram que, em 2024, os impostos sobre o consumo de bens e serviços responderam por 13,91% do PIB, enquanto os tributos sobre renda somaram 9,09% do PIB (Tesouro Nacional, 2024).
Em valores absolutos, isso significa que os tributos sobre consumo — como ICMS, IPI, Cofins, PIS e ISS — arrecadaram aproximadamente R$ 1,63 trilhão em 2024. Já os impostos sobre renda, incluindo IRPF, IRPJ, CSLL e IRRF, totalizaram cerca de R$ 1,068 trilhão, segundo dados divulgados pelo Ministério da Fazenda e pelo Tesouro Nacional.
A lógica é simples: todos consomem, independentemente de quanto ganham. Mas enquanto os mais ricos poupam parte significativa da renda, os mais pobres destinam praticamente tudo ao consumo, sendo assim, proporcionalmente, mais tributados. Essa estrutura gera a chamada “fiscalidade regressiva”, isto é, um sistema tributário que contribui para aumentar a desigualdade em vez de corrigi-la.
Para além dos números brutos, a estrutura dos impostos no Brasil revela um desenho que penaliza os mais vulneráveis. Segundo o mesmo boletim do Tesouro Nacional, as contribuições sociais (como INSS, CSLL e PIS/Pasep) representam 6,65% do PIB, enquanto os impostos sobre propriedade (como IPTU, IPVA e ITR) não chegam a 2%. Isso indica que o país também arrecada pouco sobre riqueza e patrimônio.
Vale destacar que o imposto estadual ICMS — o carro-chefe da tributação sobre consumo — responde sozinho por cerca de 22% da receita tributária total, alcançando cerca de R$ 900 bilhões em 2024. O ISS, principal tributo municipal, também é cobrado sobre consumo de serviços e representa cerca de 3% da carga total, segundo estimativas do Banco Central e do portal Impostômetro.
Esse arranjo tributário, excessivamente baseado em impostos indiretos, não é uma particularidade brasileira, mas o Brasil está entre os países que mais dependem deles. Enquanto na média dos países da OCDE os tributos sobre consumo representam cerca de 32% da receita total, no Brasil eles chegam a ultrapassar 50%, segundo estudo do Ipea (Ipea, 2024).
Essa dependência de tributos indiretos foi reforçada ao longo dos anos por uma série de reformas parciais que ampliaram contribuições sobre faturamento (como Cofins e PIS) sem mexer nos pilares da tributação sobre renda. A última tentativa de reorganização ampla — a reforma tributária aprovada em 2024 — não foi suficiente para equilibrar essa questão.
É importante observar que a tributação sobre renda no Brasil, embora significativa em termos nominais, concentra-se principalmente nas empresas (via IRPJ e CSLL) e nos assalariados formais de renda média. Já a tributação sobre grandes fortunas, heranças ou dividendos é praticamente inexistente, o que também contribui para a regressividade geral do sistema.
Além disso, o Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) mantém alíquotas relativamente modestas e uma faixa de isenção ampla, o que reduz a capacidade de correção da desigualdade. A ausência de tributação sobre dividendos, por exemplo, cria um incentivo perverso à chamada “pejotização” e à elisão fiscal. O problema da “pejotização” merece uma longa discussão, inclusive nos impactos sobre as relações trabalhistas (não aquelas usualmente vociferadas pela Justiça Trabalhistas, mas problemas muito mais profundos – quiçá tenhamos oportunidade de discutir em colunas futuras).
O resultado prático desse arranjo é que, em média, os 10% mais pobres comprometem cerca de 30% de sua renda com tributos, enquanto os 10% mais ricos gastam proporcionalmente menos de 20%, segundo simulações da Carta de Conjuntura do Ipea. Isso reverte a lógica de justiça fiscal preconizada por sistemas progressivos.
A estrutura regressiva do sistema tributário brasileiro não é apenas injusta: ela é ineficiente. Ao tributar consumo de forma excessiva, o país penaliza setores de baixa margem, compromete a competitividade e desestimula o crescimento. Empresas que atuam no mercado interno enfrentam uma carga maior do que aquelas voltadas à exportação, criando distorções que afetam o dinamismo econômico.
Outro efeito perverso é a complexidade gerada pela sobreposição de tributos indiretos. ICMS, ISS, IPI, PIS, Cofins — todos com regras próprias, bases diferentes e exigências acessórias específicas — tornam o sistema disfuncional. Para as empresas, isso representa custos de conformidade elevados e riscos jurídicos constantes. Não é à toa que, em sua última edição, o célebre Relatório Doing Business do Banco Mundial (2020), coloca o Brasil na 184ª colocação, de 190 países, no quesito “facilidade para pagamento de tributos” para as empresas produtivas.
Em contrapartida, países que avançaram na adoção de sistemas tributários mais progressivos — como Alemanha, Canadá e Austrália — conseguiram não apenas reduzir desigualdades, mas também promover maior crescimento de longo prazo. Nesses, a tributação sobre renda e patrimônio possui peso relevante e os impostos sobre consumo são menos determinantes no financiamento do Estado.
A concentração da carga tributária brasileira em impostos indiretos é, portanto, mais do que um problema técnico: ela obstrui diretamente a criação de riqueza na economia.
O desafio está posto. O caminho da reforma tributária não pode se limitar a simplificar obrigações acessórias ou fundir tributos. É preciso rediscutir a distribuição da carga, transferindo parte do peso dos tributos sobre o consumo para tributos sobre renda, lucro e patrimônio.
Reequilibrar a estrutura tributária brasileira é, portanto, uma questão de justiça fiscal, mas também de racionalidade econômica. Um sistema mais progressivo não apenas redistribui melhor os ônus do Estado, como também cria as bases para um crescimento mais sustentável, inclusivo e eficiente. E é isso o que todos queremos.
Referências
- Tesouro Nacional – Carga Tributária Bruta do Governo Geral (2024)https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/carga-tributaria-do-governo-geral/2024/114
- Ministério da Fazenda – Arrecadação Federal em 2024https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro/arrecadacao-total-das-de-receitas-federais-alcancou-r-2-652-trilhoes-no-ano-de-2024
- Receita Federal – Relatório de Atividades 2024https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/relatorios/geral/2024-balanco-anual-de-atividades.pdf
- IPEA – Carta de Conjuntura n. 65, Nota 8: A Progressividade do Sistema Tributário Brasileiro (2024)https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/wp-content/uploads/2024/10/241029_cc_65_nota_8_progressividade_tributaria.pdf
- Banco Central – Blog do Banco Central: Alíquotas Efetivas de Impostos no Brasil (2000-2023), Angelo Marsiglia Fasolo, Carla Tito Fernandes, Nelson da Silva. https://www.bcb.gov.br/noticiablogbc/22/noticia
- Portal Impostômetro – Estimativas de Arrecadação Total por Tributohttps://impostometro.com.br/
- OCDE – Revenue Statistics in Latin America and the Caribbean 2023 (para comparações internacionais)https://www.oecd.org/tax/revenue-statistics-in-latin-america-and-the-caribbean-23111511.htm