Em uma noite recente, Ashly Richards ajudou seu filho de 13 anos, Case, com a lição de casa. Ele resolveu problemas de matemática e fez um pouco de leitura, mostrando o progresso que vem obtendo na escola para crianças com autismo.
Richards ouviu funcionários do governo Trump sugerirem que corantes alimentares e vacinas pediátricas causam autismo e TDAH. Essa postura, disse ela, culpa injustamente os genitores.
“Não há evidências para apoiar isso”, disse Richards, 44 anos, diretora de marketing em Richmond, Virgínia. “Como mãe, é enfurecedor”.
Em seu zelo para “Tornar a América Saudável Novamente”, funcionários do governo Trump vêm fazendo declarações que grupos de defesa de pacientes e médicos dizem retratar os pacientes e os médicos que os tratam como parcialmente responsáveis por tudo o que os aflige.
O secretário de Saúde e Serviços Humanos, Robert F. Kennedy Jr., e os chefes das agências federais ligadas à saúde pública vêm atribuindo a origem de doenças crônicas e outras condições — como autismo, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, depressão, diabetes e obesidade — aos consumidores e suas escolhas de estilo de vida, mostra uma revisão de 15 horas de entrevistas gravadas, declarações de mídia social e documentos federais.
Kennedy disse, em uma coletiva de imprensa em 16 de abril, que o autismo é evitável e que as taxas estão aumentando por causa de substâncias tóxicas no meio ambiente, mesmo com a falta de evidências que assegurem a associação.
“Essas são crianças que nunca pagarão impostos. Nunca vão conseguir um emprego. Nunca vão jogar beisebol. Nunca escreverão um poema. Nunca vão namorar”, disse ele. “Muitas sempre precisarão de ajuda para usar o banheiro”. A grande maioria das pessoas no espectro não sofre com esses desafios sérios.
As declarações são mais do que retórica. Essas atitudes, que vão desde julgamentos sobre comportamentos individuais até críticas aos cronicamente pobres, vêm moldando políticas que afetam milhões de pessoas. Essas ideias têm sido um fator por trás das decisões de cortar verbas do Medicaid, um programa público de seguro-saúde para a população carente, impedir que programas federais cubram medicamentos antiobesidade e impor novas barreiras às vacinas contra COVID-19 para pessoas saudáveis, dizem médicos e especialistas em saúde pública.
Legisladores do Partido Republicano e autoridades federais de saúde, dizem eles, têm uma postura condenável em relação a doenças crônicas e aos cerca de 129 milhões de pessoas nos EUA afetadas por elas.
“Isso está no centro de grande parte do nosso problema nacional de saúde”, disse Robert Califf, que liderou a Food and Drug Administration (FDA) durante os governos de Obama e Biden. “São essas duas visões radicais. Uma, de que toda decisão de saúde depende do ‘indivíduo robusto’, contra a outra visão radical de que tudo é controlado pelo meio ambiente e pelos determinantes sociais da saúde. A verdade é que existe um continuum”.
O jogo da culpa
A autoconfiança é um tema comum entre os adeptos do MAHA, um movimento informal que tem Kennedy como figura de proa e que promove a liberdade médica, negacionismo em relação às vacinas e um foco na medicina não tradicional.
Tomando medicação para controlar o diabetes? O comissário da FDA, Marty Makary, sugeriu na Fox News no fim de maio que seria eficaz “tratar mais diabetes com aulas de culinária” em vez de “apenas jogar insulina nas pessoas”.
Pessoas com diabetes tipo 1 devem tomar insulina porque seus pâncreas não a produzem, de acordo com os Institutos Nacionais de Saúde, que também observam que muitos com diabetes tipo 2 “também precisam tomar medicamentos para diabetes”.
Tomando pílulas anticoncepcionais? Casey Means, a candidata do presidente Donald Trump para ser cirurgiã-geral dos EUA, disse que isso é um “desrespeito à vida”.
“Estamos receitando anticoncepcionais como se fossem doces”, disse ela, ano passado, no “The Tucker Carlson Show”, acrescentando que os medicamentos para controle de natalidade “estão literalmente desligando os hormônios no corpo feminino que criam essa natureza vital, cíclica das mulheres”.
Tem um filho tomando remédios para TDAH? Calley Means, que é conselheiro de Kennedy e irmão de Casey Means, disse, no mesmo programa, que Adderall (um medicamento para TDAH não aprovado no Brasil) tem sido receitado como padrão de tratamento quando as crianças ficam um pouco inquietas porque estão em ambientes sedentários, com luz solar limitada e comem muitos alimentos ultraprocessados.
Como sociedade, disse ele, “estamos realmente cometendo abuso infantil em massa de várias maneiras, estamos normalizando isso e não estamos falando sobre isso. E, então, estamos dando às pessoas estimulantes desenvolvidos pela Alemanha nazista”.
Calley Means provavelmente estava se referindo ao Pervitin, uma droga à base de metanfetamina administrada às forças de Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial. Adderall é um medicamento que requer receita médica e que contém anfetamina, um estimulante que não é o mesmo que a metanfetamina.
O Departamento de Saúde e Serviços Humanos não respondeu às mensagens pedindo comentários de Means.
Alguns conservadores e adeptos do MAHA argumentam que as pessoas precisam assumir mais responsabilidade por sua saúde. Mas os comentários que transferem a culpa para pacientes e médicos correm o risco de perpetuar estigmas, promover a disseminação de desinformação e corroer a confiança na medicina moderna, dizem grupos médicos, profissionais de saúde e grupos de defesa dos pacientes.
As declarações pressupõem que consumidores e pacientes têm controle sobre sua saúde e a prevenção de doenças crônicas, quando a realidade é mais complexa, de acordo com alguns especialistas em saúde pública. Pessoas de baixa renda, dizem eles, muitas vezes não têm acesso a mercearias e a alimentos saudáveis, podem ter de trabalhar demais para sobrar tempo para cozinhar e podem viver em áreas perigosas, onde é mais difícil sair e se exercitar.
Jerome Adams, cirurgião-geral durante o governo anterior de Trump, disse à KFF Health News que teme que esforços para promover a saúde sejam neutralizados pelo “retorno de doenças evitáveis por vacina, aumento da desconfiança no sistema de saúde e na demolição de bases sociais que são essenciais para permitir escolhas saudáveis”.
Conversa difícil
As atitudes dos principais funcionários de saúde de Trump afetaram decisões de política pública, dizem alguns médicos e especialistas em saúde pública.
Kennedy e outros líderes da área de saúde do governo Trump têm falado abertamente sobre comportamentos que consideram especialmente condenáveis.
Por exemplo, o governo Biden propôs uma regra em novembro que permitiria que o Medicare, um seguro-saúde federal que atende especialmente a pacientes idosos, cobrisse medicamentos para perda de peso, como Wegovy e Zepbound. Mas Kennedy e outros indicados políticos no HHS e agências vinculadas criticaram as drogas e as pessoas que as tomam.
“Eu acho que é muito ruim”, disse Calley Means a Carlson, referindo-se às drogas para perda de peso. “Acho que é uma armadilha para a população dos EUA, quase como solidificar essa ideia de que existe uma pílula mágica”.
Ele acrescentou: “Onde está a urgência de dizer ‘Ei pais, talvez não devêssemos alimentar nossos filhos com comida tóxica?’.”
Kennedy também criticou os medicamentos e as pessoas que os usam, dizendo em outubro na Fox News que os fabricantes “estão contando em vendê-las aos americanos porque somos tão burros e tão viciados em drogas”.
Em abril, o governo Trump anunciou que não cumpriria a regra de cobertura da era Biden.
“Está impactando o tipo de cuidados e tratamentos que os pacientes terão”, disse Andrea Love, cientista biomédica e fundadora da ImmunoLogic, uma organização de comunicação científica. “Isso envia a mensagem de que a culpa é sua. É muito culpar a vítima. Isso cria a ideia de que o progresso científico é o diabo, demoniza coisas que não prejudicam individualmente a saúde, evitando abordar questões sistêmicas que desempenham um papel muito maior na saúde”.
Kennedy e o HHS não retornaram mensagens pedindo comentários.
Os dados mostram que estes medicamentos são eficazes. As pessoas que tomaram a maior dose de Zepbound em ensaios clínicos perderam uma média de 21 quilos, e 1 em cada 3 nessa dose perdeu mais de 26 quilos, ou 25% de seu peso corporal.
Kennedy e outros também se opõem a muitas restrições e regras de saúde da era da COVID-19. Alguns médicos e especialistas em saúde pública observam que esses funcionários minimizaram os riscos da doença ao mesmo tempo em que criticavam as vacinas desenvolvidas durante o governo anterior de Trump.
Kennedy disse que as pessoas que morreram de COVID-19 na verdade foram vítimas de doenças crônicas como obesidade, diabetes ou asma.
“Isso foi o que os matou de verdade”, disse Kennedy no programa de TV “Dr. Phil Primetime” em abril. “Essas eram pessoas que estavam tão doentes que estavam basicamente penduradas em um penhasco, e a COVID-19 apareceu e as derrubou. Mas já viviam vidas que estavam sobrecarregadas por doenças”.
A COVID-19 foi a causa subjacente de morte para mais de 940.000 pessoas nos EUA de 1º de agosto de 2021 a 31 de julho de 2022, de acordo com um relatório de 2023 publicado pelo periódico JAMA Network, uma revista de acesso aberto sobre ciências biomédicas publicada pela American Medical Association.
A COVID-19 ficou em primeiro lugar entre as mortes causadas por doenças infecciosas ou respiratórias para jovens menores de 19 anos, com base no relatório. Bebês menores de um ano de idade podem estar em maior risco de sofrer de doença grave por COVID-19, em comparação com crianças mais velhas, mostram estudos, e os riscos também são maiores para bebês menores de 6 meses e aqueles com condições médicas subjacentes.
“A vacinação durante a gravidez pode ajudar a proteger os bebês após o nascimento”, de acordo com o CDC.
Mas Kennedy anunciou, em maio, que o governo federal não recomendaria mais vacinas contra COVID-19 para grávidas e crianças saudáveis. Grupos médicos como a Academia Americana de Pediatria se opuseram à decisão e recorreram ao Judiciário.
Kennedy também ajudou a promover crenças de que muitos adultos sem filhos inscritos no Medicaid não trabalham e, portanto, drenam recursos do programa.
Em uma audiência de maio do Comitê de Energia e Comércio da Câmara, Kennedy disse que o programa estava em perigo por causa de “todas as pessoas saudáveis que não estão trabalhando [ou] procurando emprego”.
É uma visão adotada por legisladores republicanos, que descreveram adultos inscritos no Medicaid como preguiçosos, à medida que faziam avançar um projeto de lei orçamentária que, estima-se, cortará os gastos federais com o programa em cerca de US$ 1 trilhão ao longo de uma década, em parte impondo exigência de comprovação de trabalho a muitos beneficiários adultos.
“Crianças de 35 anos, sentadas em casa jogando videogame, agora terão que conseguir um emprego”, disse o líder da maioria da Câmara, Steve Scalise, da Louisiana.
O projeto, que Trump sancionou, fará com que cerca de 10 milhões de pessoas a mais fiquem sem seguro de saúde até 2034, estima o Escritório de Orçamento do Congresso.
Alguns especialistas em saúde que criticaram a legislação dizem que as declarações difamaram os inscritos do Medicaid, que por lei não podem ter empregos bem remunerados e permanecer no programa.
Quase dois terços dos adultos de 19 a 64 anos cobertos pelo Medicaid em 2023 estavam trabalhando. Para cerca de 3 em cada 10, responsabilidades de cuidador, doença, deficiência ou matrícula escolar os impediam de trabalhar, de acordo com a KFF, uma organização sem fins lucrativos de informações de saúde que inclui o KFF Health News.
“Está usando tropos anti-bem-estar para algo que é assistência médica básica, não um benefício em dinheiro”, disse Anthony Wright, diretor executivo da Families USA, que apoia a Lei de Cuidados Acessíveis (programa criado no governo Obama para ampliar o acesso a seguros-saúde) e a cobertura de saúde expandida. Ele resumiu a mensagem republicana: “Vamos dificultar que consiga a ajuda que você precisa exigindo um monte de papelada, e se você não conseguir, a culpa é sua”.