Duas das principais organizações de direitos humanos sediadas em Israel, a B’Tselem e o Médicos pelos Direitos Humanos, acusaram nesta segunda-feira, 28, o próprio país de cometer genocídio contra palestinos na Faixa de Gaza. Segundo os grupos, os aliados ocidentais de Tel Aviv têm o dever legal e moral de tomar ações concretas para impedir o crime contra a humanidade.
Em dois relatórios publicados nesta segunda, a B’Tselem e o Médicos pelos Direitos Humanos afirmaram que Israel, ao longo de 21 meses de guerra, atacou civis em Gaza apenas porque são palestinos, causando danos graves e, em alguns casos, irreparáveis à sociedade local.
Diversos grupos internacionais já haviam descrito a operação militar israelense como genocida – o Brasil recentemente aderiu a um processo contra Israel na Corte Internacional de Justiça, das Nações Unidas, por esse motivo –, mas denúncias vindo de duas das organizações de direitos humanos mais respeitadas em Israel devem aumentar a pressão por ações.
Acusações graves
Os relatórios detalham uma série de crimes, incluindo a morte de dezenas de milhares de mulheres, crianças e idosos, o deslocamento forçado em massa da população e o uso da fome como arma na guerra, bem como a destruição de casas, hospitais e escolas – que privaram os palestinos do acesso à saúde, educação e outros direitos básicos.
“O que vemos é um ataque claro e intencional contra civis com o objetivo de destruir um grupo”, resumiu Yuli Novak, diretora da B’Tselem. “Acho que todo ser humano deve se perguntar: o que fazer diante de um genocídio?”
Segundo ela, é vital reconhecer que há genocídio em Gaza mesmo sem uma decisão da Corte Internacional de Justiça sobre o processo em andamento. “Genocídio não é apenas um crime legal. É um fenômeno social e político.”
O Médicos pelos Direitos Humanos, por sua vez, traçou um relato cronológico detalhado do ataque ao sistema de saúde de Gaza. O diretor da organização, Guy Shalev, argumentou que a destruição de hospitais e serviços de emergência por si só torna a guerra genocida, nos termos do artigo 2c da Convenção sobre Genocídio, que proíbe a imposição deliberada de condições de vida calculadas para destruir um grupo “no todo ou em parte”.
“Não é necessário que todos os cinco artigos da Convenção sobre Genocídio sejam cumpridos para que algo seja (considerado) genocídio”, afirmou, embora o relatório também detalhe outros aspectos da conduta das Forças Armadas israelenses que sustentam o argumento.
Tanto a B’Tselem quanto o Médicos pelos Direitos Humanos alertaram que os aliados ocidentais de Israel, em especial nos Estados Unidos e na Europa, ajudam a sustentar “a campanha genocida” e também são responsáveis pelo sofrimento em Gaza. “Isso não poderia acontecer sem o apoio do mundo ocidental”, disse Novak. “Qualquer líder que não esteja fazendo o que pode para impedir isso faz parte desse horror.”
Shaley ecoou o posicionamento, afirmando que Washington e países europeus têm a responsabilidade legal de tomar medidas mais enérgicas do que as que adotaram até agora. “Todas as ferramentas disponíveis devem ser utilizadas. Não é nossa opinião; é isso que a convenção sobre genocídio exige.”
Israel nega estar cometendo um genocídio e afirma que a guerra em Gaza é de legítima defesa, devido aos ataques liderados pelo Hamas contra comunidades do sul do país em 7 de outubro de 2023, que mataram 1.200 pessoas, a maioria civis. Outras 251 foram sequestradas e levadas para Gaza, onde 50 permanecem em cativeiro, e acredita-se que 20 delas ainda estejam vivas.
Definição complexa de comprovar
Um elemento-chave para comprovar o crime de genocídio, conforme definido pela convenção internacional, é a demonstração da intenção de um Estado de destruir um grupo-alvo, no todo ou em parte.
Ambas as organizações israelenses de direitos humanos afirmam que declarações genocidas de políticos e líderes militares, bem como uma cronologia de impactos bem documentados da guerra sobre civis, são prova dessa intenção, mesmo sem um registro em papel das ordens da cúpula israelense.
O relatório do Médicos pelos Direitos Humanos detalha como “a intenção genocida pode ser inferida a partir do padrão de conduta”, citando precedentes legais do Tribunal Penal Internacional para definir o crime em Ruanda.
Segundo o diretor do grupo, a extensa documentação de crimes, por médicos, pela mídia e organizações de direitos humanos ao longo de quase dois anos de conflito, significa que o governo israelense não pode alegar que não compreendeu o impacto de suas ações. “Houve momentos e oportunidades suficientes para Israel interromper esse ataque sistemático e gradual”, disse Shalev.
A incitação ao genocídio tem sido registrada desde o início da guerra. É uma das duas questões sobre as quais o juiz israelense responsável pelo caso ao qual o Brasil aderiu na Corte Internacional de Justiça ordenou medidas de emergência para a proteção dos palestinos contra o “risco plausível de genocídio”. O parecer final, porém, pode ainda demorar anos.
“(Líderes israelenses) falaram sobre animais humanos (em referência aos palestinos). Eles falaram sobre o fato de não haver civis em Gaza ou de haver uma nação inteira responsável pelo 7 de outubro”, afirmou Novak, da B’Tselem. “Se a liderança de Israel, a liderança do Exército e a liderança política sabem das consequências dessa política e insistem nela, fica claro que ela é intencional.”
O número de mortos em Gaza devido à guerra se aproxima de 60 mil, ou mais de 2,5% da população pré-guerra. Estima-se que quase a totalidade dos palestinos tenha sido deslocada durante o conflito. Segundo a ONU, cerca de 80% dos habitantes do enclave vive hoje sob ordens de evacuação ou em zonas militarizadas por Israel, o que significa que cerca de 2 milhões de pessoas estão espremidas em apenas um quinto do território – isso numa região que já é uma das mais densamente povoadas no mundo.