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Grão de riqueza

A observação dos ritmos da natureza marca a história da humanidade. A troca das estações, o movimento da Terra em torno do sol e as particularidades de cada temporada deram origem a diversos costumes mundo afora. E, de todos os ciclos, o mais celebrado é o da virada do ano, despertando o impulso ritual até nos mais céticos. Dentre os muitos alimentos envolvidos nas tradições da época, a lentilha é um dos mais antigos.
Ela acompanha a alimentação humana há pelo menos oito mil anos. Era consumida já nos primeiros assentamentos agrícolas do Crescente Fértil, e escavações em tumbas egípcias mostram que, entre os súditos dos faraós, era muito valorizada. Em diversas culturas, era vista como um grão confiável, fácil de armazenar e resistente.
O preparo básico, um ensopado simples, eventualmente enriquecido com cebolas, ervas ou azeite, atravessou fronteiras e séculos, dando origem a pratos que ainda hoje reconhecemos. No Oriente Médio, o guisado espesso de lentilhas nutriu camponeses e viajantes desde tempos ancestrais. Na Índia, o “dal” tornou-se um dos pilares da alimentação, servido onde não havia carne. Na Europa medieval, era a base de sopas quentes e reconfortantes, comuns em mosteiros e aldeias.
Gregos e romanos a viam de forma ambígua. Sempre preparada de forma simples, era associada à frugalidade, quase um emblema da comida “sem excessos”. Nem por isso, porém, era considerada pobre. Ao contrário: médicos a recomendavam para quem precisava de força. Era um alimento confiável se o resto escasseava.
Assim, muito antes dos discursos contemporâneos sobre substituição alimentar, ela era reconhecida como capaz de saciar e sustentar. Os antigos já intuíam as propriedades nutricionais dessa leguminosa, que hoje sabemos ser rica em fibras e proteínas e de baixo índice glicêmico.
Foram ainda os romanos os responsáveis por associá-la, de forma mais explícita, à prosperidade. Era comum entre eles presentear amigos e familiares com a “scarsella”, uma pequena bolsa cheia de lentilhas, desejando que os grãos se transformassem em dinheiro. O formato arredondado e achatado evocava moedas, assim como o fato de que, ao cozinhar, as lentilhas aumentam de volume, simbolizando crescimento e abundância.
Com o passar do tempo, a lentilha tornou-se prato tradicional das ceias de Ano-Novo italianas, acompanhada do embutido suíno chamado “cotechino”. A carne, reservada a ocasiões especiais, reforçava a ideia de fartura; sendo porco, um animal que avança fuçando para a frente, ampliava-se o desejo de progresso. No Brasil, aprendemos esse costume com os imigrantes e o incorporamos ao nosso próprio repertório de rituais.
Felizmente, a lentilha é também muito versátil e não precisamos prepará-la de forma pesada para invocar seus muitos sentidos. Ela vai muito bem em saladas, aptas ao calor dos nossos dezembros, ou em bolinhos que fazem bonito como aperitivo nas festas.
Ao servir lentilhas na virada do ano, repetimos um gesto antigo, que nos liga aos ancestrais mais remotos. Mas, seja do jeito que for, recomendo que ela esteja presente à sua mesa, nesta e em outras épocas do ano. Trazendo dinheiro ou não, ela é realmente fonte de riqueza.

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