Nem sempre a estatística conta a história completa, mas convém não desdenhá-la. Em 1950, houve 25 milhões de chegadas internacionais por meio de aeroportos, portos e estradas. No ano passado, o número bateu em 1,4 bilhão, patamar muito próximo ao período imediatamente anterior à reclusão imposta pela eclosão da covid-19. É muita coisa, um volume de turistas multiplicado por 56. É informação matemática que não demora a ser sentida para quem viaja ao exterior. Trata-se da impossibilidade de alcançar uma nesga da Mona Lisa sem enfrentar um batalhão de smartphones ao alto. São as filas infindáveis para entrar no Louvre, no MoMA de Nova York, na Gallerie degli Uffizi de Florença… É o inferno de Dante na terra. Não há escapatória, a não ser em momentos excepcionais, como o da pandemia, ou a canícula da semana passada, que forçou o fechamento temporário da Torre Eiffel e, milagre, deu-se o vazio (leia em Imagem da Semana, na pág. 14).
O início das férias no Brasil é a senha natural para conhecer o mundo, mas agora, mais do que nunca, no verão do Hemisfério Norte, é atalho para duas certezas absolutas: a presença de hordas, chamemos assim; e os protestos de moradores de parte das cidades mais visitadas da Europa, como Veneza, Nápoles, Roma, Lisboa, Barcelona e Madri. O lema comum: “Turistas, voltem para suas casas!”. Entretanto, a mensagem por trás da grita vai muito além da xenofobia, ainda que possam existir laivos reais de preconceito contra os forasteiros.
É reação legítima, embora incômoda, contra os impactos devastadores do turismo desenfreado, traduzidos por pane no trânsito, escassez de alimentos, falta d’água e lixo acumulado. Se os hotéis tradicionais já impactavam significativamente a dinâmica das vielas europeias, a proliferação dos aluguéis por temporada por meio de plataformas como o Airbnb elevou o problema a patamares insustentáveis. A busca desenfreada por acomodações alternativas tem expulsado os autóctones de suas casas, criando um ciclo vicioso em que os aluguéis de curto prazo encarecem drasticamente os apartamentos residenciais. As respostas governamentais não tardaram. Na Espanha, por exemplo, as autoridades ordenaram que o Airbnb removesse mais de 65 000 propriedades de seu catálogo por falta de registro adequado e especificações sobre a propriedade dos imóveis. A empresa recorreu ao sistema judiciário, mas teve o pedido negado.
A engrenagem não cessa, insidiosa. A indústria global do turismo está avaliada em 11,7 trilhões de dólares, um recorde para o setor, com os gastos de visitantes previstos para atingir 2,1 trilhões de dólares até o fim do ano, superando os níveis pré-pandêmicos. De olho nesse dinheiro, os governos aplicam incentivos fiscais para quem se dispõe a investir em negócios e serviços que atendam os turistas. O resultado é saturação do transporte público, exploração trabalhista em empregos voltados ao turismo e substituição do comércio local por estabelecimentos direcionados exclusivamente aos visitantes. “Precisamos parar de ajudar e facilitar as coisas e fazer o setor pagar a conta pelos serviços que exploram”, diz Daniel Pardo, da Assembleia de Bairros pelo Decrescimento do Turismo (ABDT), entidade criada em Barcelona. Pardo chama o processo de “turistificação” — a especialização completa de um território, sua população e economia na atividade para quem vem de fora.
Em meio aos cartazes e manifestações, um símbolo peculiar emergiu como marca da resistência catalã: as pistolas d’água, borrifadas contra os estranhos. É tensão que cresce e contamina a sociedade. Em Paris, recentemente, funcionários do Louvre fecharam as portas da instituição mais visitada do mundo sem aviso prévio. Atendentes, seguranças e agentes de bilheteria reivindicam melhores condições de trabalho diante da falta de pessoal para atender as multidões. A Ministra do Turismo italiana, Daniela Santanchè, propôs o uso de inteligência artificial (IA) para controlar o fluxo assustador e crescente.
Há solução? Cidades como Veneza têm experimentado sistemas de pedágio urbano, embora os resultados ainda sejam inconclusivos. A busca por reformulação das políticas públicas de incentivo ao turismo, regulamentação dos aluguéis por temporada e desenvolvimento de modelos sustentáveis que considerem tanto os benefícios econômicos quanto o bem-estar das populações locais. O movimento de resistência sinaliza a necessidade urgente de repensar o turismo como atividade econômica, sem ofender os visitantes, em busca de equilíbrio.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2025, edição nº 2951