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Entre dois mundos: a hora de escolher

Vivemos uma transição rara na história. A ordem internacional das últimas décadas, marcada por integração econômica e hegemonia liberal, está sendo desafiada por novos vetores de poder. O comércio, a tecnologia e os valores políticos tornaram-se arenas de disputa. As grandes potências reavaliam alianças, redesenham zonas de influência e testam os limites da soberania. Nesse novo mundo, quem hesita corre o risco de ser deixado para trás.

Estados Unidos, União Europeia e seus principais parceiros adotaram uma estratégia de reindustrialização combinada com segurança energética e reconfiguração das cadeias produtivas. Incentivam a relocalização para territórios considerados seguros, no movimento chamado nearshoring. Procuram parceiros democráticos, confiáveis, com matriz energética limpa e compromisso ambiental. México, Vietnã, Polônia, Coreia do Sul e Marrocos já ocuparam espaços estratégicos. A América Latina, por enquanto, permanece ausente dessa nova geografia econômica.

O Brasil tem todas as condições para assumir papel de destaque. Dispõe de território abundante, agricultura eficiente, matriz energética limpa, instituições resilientes e um mercado interno robusto. Falta apenas uma decisão: em que direção queremos caminhar nas próximas décadas?

Não é a primeira vez que enfrentamos um dilema desse tipo. Durante a Segunda Guerra, o então presidente Getúlio Vargas resistiu às pressões dos dois lados até perceber que a neutralidade não bastava. Ao se alinhar aos Estados Unidos, garantiu ao país acesso a crédito, tecnologia e um novo ciclo de industrialização. Não foi submissão. Foi cálculo. E também visão.

O momento atual exige coragem semelhante. A carta enviada por Donald Trump ao governo brasileiro, anunciando tarifas de cinquenta por cento sobre produtos nacionais, deve ser lida como mais que um gesto isolado. Ela mistura comércio e ideologia, reclama de decisões judiciais tomadas no Brasil, defende Jair Bolsonaro e insinua retaliações por divergências políticas. É uma nova forma de diplomacia coercitiva, que usa economia e redes sociais para projetar poder.

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Ao mesmo tempo, o próprio presidente Lula, ao discursar na conferência do Brics, sugeriu que o dólar deixasse de ser a principal moeda de comércio global. A frase, ainda que simbólica, repercutiu como sinal de distanciamento. O cruzamento dessas posições, nos dois lados, pode levar o Brasil a um ponto de atrito com seu maior parceiro comercial, sem que haja um plano claro de compensação.

Em abril deste ano, alertei nesta coluna que o novo protecionismo americano poderia, paradoxalmente, abrir uma janela de oportunidade para o Brasil. Ao aplicar tarifas elevadas sobre seus principais fornecedores, os Estados Unidos criavam, involuntariamente, espaço para que o Brasil ocupasse novas posições nas cadeias globais de valor. Naquele momento, destaquei que a atitude do governo brasileiro seria decisiva para transformar uma ameaça em trunfo. O cenário atual apenas confirma essa leitura: não se trata de resistir à maré, mas de entender sua direção e navegar com inteligência.

Essa situação revela o esgotamento dos blocos aos quais estamos vinculados. O Brics, idealizado como articulação entre países emergentes, tornou-se palco de interesses desiguais, dominado pelas agendas de China e Rússia. O Mercosul, ainda refém de práticas protecionistas, dificulta avanços bilaterais mais ambiciosos. Em ambos, nossas prioridades estratégicas muitas vezes cedem espaço a consensos frágeis.

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Chegou a hora de redesenhar a forma como o Brasil se insere no mundo. Precisamos propor um novo acordo bilateral com os Estados Unidos, com foco em livre comércio, fluxo de capitais, inovação, energia limpa e segurança alimentar. Um pacto de alta densidade estratégica, que nos reposicione como elo de confiança entre o Norte e o Sul, entre o Ocidente e os emergentes.

Isso não significa rompimento com parceiros tradicionais, tampouco adesão automática a qualquer doutrina externa. Exige apenas maturidade. Exige compreender que as condições do mundo mudaram e que permanecer imóvel é, em si, uma escolha. E uma escolha arriscada.

O presidente Lula foi eleito com a promessa de unir e reconstruir o Brasil. Essa missão começa por uma definição clara de rumo internacional. Permanecer numa zona de ambiguidade, em tempos voláteis, não é neutralidade. É abdicação. E abdicar de escolher é abrir mão de influenciar o próprio destino.

O Brasil precisa se afirmar como o que é: uma potência democrática, ambientalmente responsável e globalmente relevante. E esse futuro começa com uma escolha. Não entre países, mas entre o passado que nos limita e o futuro que podemos liderar.

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