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Entre a formação e a prática: o gargalo da especialização médica no país

O governo federal acaba de anunciar o início do programa Agora Tem Especialistas, retomando um projeto anterior. É, naturalmente, louvável a ideia de ampliar a oferta de especialidades médicas no SUS (Sistema Único de Saúde), proporcionando o acesso da população a cirurgias e a atendimentos em áreas críticas. Reduzir as longas filas de espera por procedimentos, afinal, pode salvar vidas. A iniciativa, no entanto, evidencia um desafio estrutural da saúde pública brasileira: o país forma médicos, mas ainda enfrenta dificuldades para distribuir especialistas de acordo com as necessidades da população.

O aumento expressivo e contínuo dos cursos de medicina no Brasil, na maior parte dos casos sem vagas correspondentes em programas de residência médica, tem sido o responsável por inflar o número de profissionais generalistas nos grandes centros urbanos. Esses novos cursos, em sua maioria autorizados a pretexto de enfrentar a carência de médicos em cidades pequenas e localidades remotas do país, tornaram-se um lucrativo mercado de vagas, no qual a qualidade da formação nem sempre é o que mais importa.

Antes do lançamento do programa Mais Médicos, em 2013, não passava de uma centena o número de escolas de medicina no país. Hoje, já existem cerca de 400 em funcionamento e quase 300 aguardando parecer do MEC ou decisão judicial para abrirem as portas. Caso todas sejam aprovadas, o Brasil, com uma população de cerca de 212 milhões de habitantes, vai ultrapassar as 600 escolas da Índia, atualmente o país com mais cursos de medicina em todo o mundo, cuja população está próxima de 1,5 bilhão de pessoas. A China, com uma população de pouco mais de 1,4 bilhão, tem 160 escolas de medicina, e os Estados Unidos, com quase 350 milhões, tem 211.

A abertura desenfreada de vagas, sem critérios rigorosos de qualidade, tem gerado uma legião de recém-formados que saem das universidades com lacunas graves em sua formação. Na maior parte dos casos, os novos cursos estão localizados no Sudeste, embora tenha havido expansão para cidades do interior, onde, no entanto, há pouca estrutura hospitalar para o ensino prático. Não é raro que estudantes se formem sem nunca terem acompanhado um parto ou realizado procedimentos simples. Com formação precária e sem acesso à residência, necessária para o aperfeiçoamento profissional e, consequentemente, para a obtenção de título de especialista, milhares de profissionais ficam à deriva ou buscam cursos de especialização lato sensu. Além disso, os que estudam em cidades menores são atraídos para os grandes centros urbanos, onde há mais oportunidades e melhores condições de trabalho.

Na prática, as boas intenções do governo deram origem a uma grande distorção. Em 2023, quando se formaram cerca de 35 mil médicos, havia pouco mais de 20 mil vagas de residência. Essa discrepância se explica, em parte, pela falta de programas de residência médica e, em parte, pelo alto número de escolas privadas (66% do total em atividade), que oferecem apenas o diploma de graduação. Na residência, vão entrar os mais bem preparados.

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A consequência direta dessa equação desbalanceada é sentida na ponta do sistema, ou seja, na população, sujeita a atendimento precário e a intermináveis filas. A falta de especialistas sobrecarrega os serviços de atenção básica, prolonga o tempo de espera por diagnósticos e tratamentos e, o que é ainda pior, compromete a qualidade do atendimento. Exemplos não faltam: pacientes com câncer aguardam meses por uma consulta com oncologista, cirurgias ortopédicas são adiadas por falta de profissionais capacitados. A oftalmologia, essencial para idosos e diabéticos, é uma das áreas mais negligenciadas.

O programa Agora Tem Especialistas pode ajudar a mitigar temporariamente a escassez de profissionais em regiões desassistidas, até porque estabelece uma parceria com o setor privado, que vai oferecer consultas especializadas, exames e cirurgias em troca de abatimento de dívidas com a União. No entanto, sem uma política consolidada de expansão e qualificação da residência médica, a medida corre o risco de ser apenas um paliativo.

É preciso ampliar o número de vagas de residência médica, com foco nas especialidades mais demandadas pelo SUS (oncologia, oftalmologia e ortopedia, entre outras) e reavaliar os critérios de abertura de novos cursos de medicina, priorizando qualidade em vez de quantidade. Está em debate a proposta de criação de um exame de proficiência, à maneira daquele aplicado pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que vetaria o registro do profissional nos Conselhos Regionais de Medicina em caso de reprovação. Nesse modelo, o diploma teria sua validade sujeita ao desempenho do recém-formado na prova, diferentemente do que ocorre com o diploma de bacharel em Direito, dadas as diferenças entre as profissões. Por esse motivo, alega-se risco de insegurança jurídica.

De todo modo, algo precisa ser feito. O Brasil não precisa apenas de mais médicos – precisa de médicos bem formados. E isso só será possível com uma preparação sólida, que vá além do diploma e garanta a especialização necessária para atender com excelência a população. A abertura de cursos de medicina, com o incentivo do governo – tanto via ProUni como via Fies –, vem alimentando um mercado lucrativo, que precisa de algum tipo de regulação. Sem enfrentar o gargalo da residência médica e a má qualidade dos cursos de graduação, continuaremos formando médicos que não conseguem tornar-se especialistas – e quem paga essa conta é, como sempre, o cidadão.

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