As maiores favelas de São Paulo registraram até 15 graus Celsius a mais do que bairros vizinhos durante o último verão. O contraste ficou evidente em imagens de satélite analisadas pelo Centro de Estudos da Favela, o CEFAVELA, ligado à UFABC e apoiado pela Fapesp. Paraisópolis chegou a 45 graus na superfície em dias quentes, enquanto o Morumbi, que fica ao lado, permaneceu na casa dos 30 graus.
Em Heliópolis, a temperatura superficial ultrapassou 44 graus.
O levantamento utilizou 19 imagens termais do satélite Landsat 8 feitas entre dezembro de 2024 e fevereiro de 2025. A medição considera o calor de telhados, ruas e solo, o que explica valores mais altos do que os de termômetros convencionais que aferem apenas a temperatura do ar.
Embora seja um método utilizado há anos por centros urbanos no mundo inteiro, em São Paulo a leitura evidencia desigualdades históricas: áreas nobres têm mais sombra, vegetação e materiais de construção que dissipam calor. Já nos territórios de moradia informal, predominam telhados metálicos, ruas estreitas e quase nenhuma área verde.
Onde o calor é mais intenso
O bairro do Capão Redondo concentra quatro das dez favelas mais quentes da cidade, com pico de 47 graus na comunidade Jardim Capelinha Nuno Rolando.
Na outra ponta do mapa, favelas próximas às represas Billings e Guarapiranga registraram temperaturas bem inferiores. No Jardim Apurá, junto à Billings, a média ficou em torno de 23 graus na superfície. A diferença reforça o papel central de áreas verdes e corpos d’água no controle térmico.
De acordo com o IBGE, cerca de 1,7 milhão de moradores vivem em 1.359 favelas paulistanas. Elas ocupam apenas 4 por cento do território, mas concentram mais de 15 por cento da população.
O mapa térmico produzido pelo CEFAVELA mostra que essas regiões registram, com frequência, valores acima de 40 graus. A distribuição não é aleatória. Ela coincide com zonas de maior densidade habitacional, menor presença de árvores, deficiência de infraestrutura e ausência histórica de investimentos.
Estudos internacionais apontam fenômenos semelhantes em cidades de clima diverso. Pesquisas do New York City Environmental Justice Alliance e da Universidade da Califórnia mostram que bairros negros e hispânicos nas grandes metrópoles norte-americanas chegam a ser até 7 graus mais quentes do que regiões brancas mais ricas.
A Organização Mundial da Saúde já reconheceu que ondas de calor afetam desproporcionalmente populações de baixa renda, ampliando riscos de problemas respiratórios, desidratação e mortalidade.
O que é racismo ambiental e por que ele aparece neste caso
A desigualdade térmica observada em São Paulo não é apenas um sintoma de urbanização acelerada. Ela se encaixa com precisão na definição de racismo ambiental.
O conceito descreve a distribuição desigual de riscos e de danos ambientais entre grupos sociais que não possuem o mesmo poder político, econômico e institucional.
Em outras palavras, populações historicamente marginalizadas são empurradas para áreas onde impactos climáticos, falta de infraestrutura e degradação ambiental são mais intensos.
Nas favelas paulistanas, a população é majoritariamente negra e de baixa renda. Essas comunidades foram historicamente confinadas a terrenos menos valorizados, sujeitos a enchentes, ausência de saneamento e escassez de áreas verdes. A exposição ao calor extremo é mais uma camada dessa desigualdade.
O aumento de temperatura não é um fenômeno neutro. Ele resulta de decisões de planejamento urbano que distribuíram sombra, arborização, drenagem e ventilação de forma desigual pela cidade.
Quando o calor se concentra justamente onde vivem os grupos mais vulneráveis, o problema deixa de ser apenas climático. Ele se torna social. A vida útil de equipamentos eletroeletrônicos diminui, o gasto com energia elétrica aumenta e a saúde das famílias é afetada de maneira crítica. A desigualdade se mede, literalmente, em graus Celsius.
Caminhos para reduzir o impacto
Pesquisadores do CEFAVELA defendem que políticas de mitigação precisam ir além da instalação pontual de árvores. Soluções baseadas na natureza, como corredores verdes, ampliação de parques, sistemas de drenagem sustentável, jardins de chuva, telhados verdes e hortas comunitárias, funcionam como mecanismos de resfriamento urbano e devem ser tratadas como infraestrutura essencial.
O Brasil já possui casos bem-sucedidos em cidades médias que adotaram corredores de vegetação para reduzir o calor, como Sobral e Campinas.
A implementação dessas medidas, no entanto, depende de decisões de longo prazo e de uma mudança de perspectiva nas políticas habitacionais.
Calor extremo deve ser tratado como critério de prioridade, e não como um efeito colateral inevitável. Incorporar o risco térmico ao conceito de moradia adequada é uma forma de enfrentar a desigualdade ambiental e de reconhecer que parte da população paga um preço maior pela falta de planejamento urbano.