“O futuro não é mais como costumava ser.” A frase do poeta francês Paul Valéry (1871-1945), de aguda ironia, poderia ser aplicada ao desenvolvimento dos carros autônomos, sem motoristas. Quando os primeiros protótipos começaram a sair dos laboratórios de mobilidade e inovação, em meados dos anos 1990, imaginava-se que nos anos 2000 e tanto, o ponto no qual estamos, eles seriam realidade irrefreável, um mundo como o do romântico desenho animado Os Jetsons. Não deu certo, e o amanhã foi sendo empurrado um pouquinho mais para a frente. Evidentes problemas de segurança — um recente levantamento nos Estados Unidos revelou terem ocorrido 9,1 acidentes a cada 1,6 milhão de quilômetros percorridos em veículos sem condutor, ante 4,1 batidas entre os automóveis com condutor — forçaram o freio. General Motors, Uber e Apple decidiram abandonar seus projetos, afirmando ser preciso muito tempo e dinheiro para escalar o negócio e mantê-lo seguro, depois de sucessivos sustos em testes, nas ruas e no bolso dos acionistas.
Entre idas e vindas, há agora uma interessante novidade, naturalmente ancorada nos avanços da inteligência artificial. A Amazon acaba de pôr nas ruas de Las Vegas táxis sem volante e sem pedais, de desenho genuinamente futurista, como se fossem de brinquedo. Circulam apenas em trechos específicos da capital dos jogos e atendem a pessoas cadastradas em lista de espera. As máquinas modernosas saíram da linha de montagem da Zoox, startup comprada pela turma de Jeff Bezos pela bagatela de 1,3 bilhão de dólares em 2020. A entrada em cena de companhia tão poderosa força os concorrentes a permanecerem na pista. A saber: o Waymo, da Alphabet, empresa-mãe do Google; e o Tesla, do faz-tudo Elon Musk. O trio começa a despontar já sem muita discrição nas avenidas iluminadas por neon da Sin City e em outros centros urbanos americanos (na Europa, ainda não).

Não andam totalmente sozinhos, convém ressaltar. No caso do Tesla, por exemplo, há um ser humano a bordo, atento a surpresas. O carro da Amazon promete ser um passo adiante. “O arsenal de tecnologia do modelo da Zoox, com amplitude de sensores, abre espaço para pensar em veículos sob medida para diferentes usos, como transporte coletivo, logística e delivery”, diz Alexandre Harayashiki Moreira, professor de engenharia de controle e automação do Instituto Mauá de Tecnologia.
Na contramão dos reveses, e de levantamentos que comprovam a autonomia estar ainda na infância, os fabricantes sonham alto ancorados em um dado relevante: a maior parte dos acidentes de trânsito é causada por falha humana. No Brasil, a proporção corresponde a 90%, segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária.

Mas por que, agora, há o salto, depois de um período de interrupção? A resposta: a expansão tecnológica da indústria de sensores, atrelada à IA. Contudo, é movimento caro. Não à toa, houve a escolha por táxis e aplicativos. “O sistema de frota compartilhada é mais viável, ao diluir os custos e permitir que os veículos gerem receita de forma contínua”, afirma Moreira, do Instituto Mauá. No Brasil, porém, tudo ainda está mais próximo da pré-história do que do século XXII. Há apenas testes e pesquisas acadêmicas — e um caminhão de obstáculos literais. Seria preciso, antes de mais nada, refazer a malha viária das ruas, tristemente esburacadas, e organizar o caos do trânsito. Mesmo assim, a Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei visando determinar regras para experiências com protótipos. É um pequeno passo, ainda que apartado do real.
No mundo das ilusões, é o caso de seguir a história erguida diante de nossos olhos, mas sem as mãos. O fim dos motoristas é também, de algum modo, o adeus ao carro como símbolo de status, de independência — e sobretudo uma revolução nos hábitos e costumes da civilização do petróleo e da eletricidade. O engenheiro mecânico Hod Lipson e a analista Melba Kurman escrevem em Driverless: Intelligent Cars and the Road Ahead (Sem Motorista: Carros Inteligentes e a Estrada à Frente): “O hábito de dirigir equivale ao ingresso na idade adulta e à conquista de liberdade; sem a necessidade da licença para dirigir, aos 16 anos nos Estados Unidos, aos 18 em outros países, o carro deixará de representar o rito de passagem entre a infância e a idade adulta”. Mas não é fácil crescer.
Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2025, edição nº 2963