Em uma das obras clássicas da literatura mundial, As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, publicada em 1726, o envelhecimento e a imortalidade são a maldição de um grupo, os struldbruggs. No livro, eles nascem com uma pinta vermelha na testa, que os diferencia dos reles mortais, mas não dispõem do privilégio de permanecerem jovens para sempre. Seu organismo se desgasta continuamente, até que, aos 80 anos, quando perdem a capacidade mental, são exilados na ilha de Luggnagg. Guardadas as devidas proporções ficcionais, na vida real o destino dos mais velhos não foi tão diferente durante séculos. Salvo uma ou outra exceção, o degredo da aposentadoria sempre pairou no horizonte. Mas, com o avanço da medicina e do autocuidado, nos últimos anos há uma autêntica revolução. Hoje, idosos ativos e saudáveis disputam espaço com os mais jovens no mercado de trabalho, nas academias de ginástica e nos espaços culturais. A força corporal, somada a outros fatores demográficos, está alterando a pirâmide etária no Brasil: o grupo de cidadãos acima dos 64 anos mais que dobrou em quatro décadas, enquanto o número de crianças e adolescentes caiu pela metade. É uma transformação relativamente rápida, em comparação com a de nações europeias, e que põe em evidência um grande contingente de público maduro que vive mais e melhor, tem dinheiro no bolso, boa formação e não quer mais se submeter a rótulos e estigmas. Sim, eles são os donos de seu tempo.
Para combater inimigos etários como a natural perda muscular e a queda dos hormônios, essa crescente parcela da sociedade zela pelo corpo e pela mente e não abre mão do trabalho e dos prazeres da vida — com viagens e sexo incluídos no pacote. Em poucas palavras, eles estão redefinindo a ideia de aposentadoria, uma etapa da existência que demarcava o rumo à velhice. “A etimologia da palavra já tem um grande peso, pois significa o retorno ao aposento, onde moram a inatividade e a morte”, diz o consultor Edson Moraes, mestre em ciência do envelhecimento. Historicamente, a longevidade sempre esteve associada à falta de dignidade, propósito e vitalidade, apesar do desejo inerente do ser humano de querer viver sempre mais. E isso se intensificou com a consolidação da Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, quando o indivíduo passou a ser valorizado pela sua capacidade produtiva. A linhagem deu lugar ao sobrenome empresarial. Deixar de produzir, nesse contexto, seria o mesmo que ser condenado à ilha de Luggnagg das peripécias de Gulliver. A aposentadoria, portanto, se tornava o reduto daqueles aniquilados pela idade, que perdem o direito de voz, convívio e até propriedade. É diante dessa visão de vida e mundo que o público maduro de hoje vem se rebelando mais intensamente na última década.

No período, a presença de gente com mais de 60 anos no mercado de trabalho decolou 63%, pelas contas do IBGE. Nessa altura da vida, com filhos criados e maior segurança financeira — ao menos para uma fatia dos brasileiros —, os idosos que não se sentem idosos se sentem livres para arriscar e aventurar-se. Foi nesse cenário de novas possibilidades que o funcionário público aposentado Edson Visockas, de 62 anos, decidiu mudar de profissão. Para a surpresa da família, fez um curso de formação para trabalhar como instrutor de paraquedismo. Era um desejo que guardava havia mais de dez anos, mas que não tinha realizado para não desagradar a esposa, mãe e filha. Veio então o divórcio, o que facilitou a virada de chave. Ele buscava outra ocupação para completar a renda da aposentadoria, mas não queria encarar algo burocrático. “Trabalho desde os 12 anos, não dava para ficar parado, porque o corpo padece”, diz o instrutor, que atua em Boituva, meca desse esporte no interior paulista. Pular de um avião a 12 000 pés de altura, em queda livre a 200 quilômetros por hora, é, aliás, uma ideia que seduz o público sênior. Na escola Skydive, de Boituva, dois de cada dez alunos têm mais de 60 anos. Há duas décadas, era raro encontrar gente com essa idade saltando.

Além da mudança de comportamento, nessa fase da vida há melhores condições para gastos com lazer do que na faixa dos 30 aos 50, quando é preciso pagar escola, faculdade e carro novo para o filho. Para se ter uma noção do investimento em diversão, um salto de paraquedas custa mais de 500 reais, e um curso completo ultrapassa os 5 000 reais. Pois é, uma pesquisa do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) aponta que 41% dos consumidores grisalhos gastam mais com produtos de desejo do que com necessidades básicas, e a maioria (66%) considera uma prioridade aproveitar a vida. Dinheiro, de fato, eles têm. Pessoas com mais de 65 anos representam 17% dos 5% mais ricos do Brasil, segundo cálculo da Fundação Getulio Vargas. Não à toa, os “novos velhos” estão se tornando os queridinhos da chamada economia prateada, mercado responsável por movimentar 1,7 trilhão de reais por ano. As projeções indicam que esse montante deve chegar a 3 trilhões em 2030, quando o país passará a ter a quinta maior população de idosos do planeta.
Fora o investimento de cidadãos e empresas nos cuidados com a saúde, algo reforçado pela presença das doenças crônicas, mais comuns com o envelhecimento, há um pujante aumento dos serviços direcionados a estética, bem-estar e lazer nesse momento de vida. Espaços que já foram exclusivos de jovens sarados, as tradicionais academias hoje possuem programas específicos para os clientes maduros. É o caso da Bio Ritmo, que tem plano com ioga, pilates e reeducação postural, entre outras atividades para aumentar a força e o desempenho físico no cotidiano. “As academias de elite hoje possuem mais cabeças brancas do que jovens”, diz o personal trainer Gilson Lima, que atende principalmente alunos acima de 60 anos. Sua pupila mais velha, Hilda Abrão, tem 98. É lúcida, aplicada e se diverte puxando ferro. “Faço para continuar andando sem precisar de bengala”, conta. “Eu sento e levanto do sofá rapidamente, sem esforço, porque faço agachamentos orientados pelo professor, três vezes na semana.” A musculação é considerada uma atividade crucial nesse período, quando tanto a densidade óssea como a massa muscular tendem a decair. O movimento também é um antídoto contra a solidão e o declínio mental.
A paulistana Hilda não está só nessa cruzada para não perder a vitalidade. O médico japonês Nobolo Mori, de 101 anos, joga golfe todos os dias em Mogi das Cruzes (SP), cidade onde passou a maior parte de sua vida. Fundador do Hospital e Maternidade Ipiranga, ele parou de trabalhar durante a pandemia, porque estava dentro do grupo de risco para covid. A partir daí, passou a se dedicar às tacadas no gramado. Recentemente, Nobolo foi homenageado pela antropóloga Mirian Goldenberg, autora do livro Coroas: Corpo, Envelhecimento, Casamento e Infidelidade (Record). A cerimônia teve como objetivo mostrar para a sociedade que é possível, sim, passar dos 100 sem abrir mão da saúde e da felicidade. “É a primeira vez na história que vemos bisavós casando e namorando”, diz a professora aposentada da UFRJ.

Não só: é a primeira vez que idosos cuidam de pessoas ainda mais velhas do que eles. Apesar de toda a autonomia do golfista, que mora sozinho, o filho, o médico Sidnei Mori, de 70 anos, supervisiona a casa e as empregadas para que não lhe falte nada. Mori visivelmente se inspira nos passos do pai. Está na quarta profissão. Começou como ortopedista, migrou para a administração hospitalar, depois passou a empreender no ramo e atualmente é assessor de investimentos. Também colabora na Secretaria da Longevidade da prefeitura de Mogi das Cruzes. “Para manter o pique, faço aulas de crossfit todos os dias e mantenho uma alimentação à base de verduras, frutas e peixes”, relata.
A vida esportiva passa a ser ainda mais importante para quem resolve parar de trabalhar. A atividade resgata a autoestima e integra o indivíduo em um círculo social, que durante uma vida longa, muitas vezes, se perde. Primeiro, porque os amigos tomam outros rumos ou morrem. Segundo, porque a rotina e os interesses mudam. O empreendedor Nivaldo Galvão, de 78 anos, só deixou o sedentarismo quando virou um sexagenário. Na época, vendeu as empresas para se dedicar aos cuidados com a esposa, que tem um transtorno psíquico, e o cunhado, portador de necessidades especiais, que foi morar com a família. “Comecei a caminhar todos os dias para melhorar a saúde.” Da caminhada para a corrida foi um pulo. No início deste ano, ele participou do Ironman, prova extremamente difícil, onde correu 78 quilômetros pela costa do litoral norte paulista. “Dentro do esporte, um velho como eu é respeitado e admirado por pessoas bem mais jovens”, diz ele, que não nega convites para festas, chopes e churrascos.

Para as mulheres, o avançar da idade ainda traz o desafio das pressões estéticas e sociais. E isso é algo que a dentista Maria Beatris Rocha, de 64 anos, busca contornar, se preciso lançando mão de procedimentos modernos. Para evitar as rugas e manter a firmeza do rosto, já colocou fios de ouro, fez preenchimentos e aplicações de Botox. Para manter o corpão, repõe hormônios, toma vitaminas e corre no Parque Ibirapuera. Seu objetivo? Envelhecer com beleza e dignidade. A jornalista gaúcha Pati Pontalti, de 51, é outra que esbanja autoestima, tanto que postou um vídeo nas redes sociais questionando: “Quem disse que mulher não pode usar biquíni acima dos 50?” Pati está na envelhecença, época que antecede a velhice e vai dos 45 aos 60, e defende que a moda, com muito ou pouco pano, é coisa de gente madura.

Apesar de todos os progressos recentes, é natural que existam desafios à vista. Por um lado, os idosos controlam cada vez mais as rédeas de seu destino; por outro, viverão em estruturas familiares cada vez mais enxutas e às sombras de um sistema previdenciário sem fôlego.“Estamos diante de uma encruzilhada cultural, social e econômica, e tudo vai depender de como cada um vai se preparar para ela”, diz a historiadora Mary Del Priore, autora do recém-lançado Uma História da Velhice no Brasil (Vestígio). Ao menos ir para o exílio de Luggnagg não é mais uma opção.
Publicado em VEJA de 13 de junho de 2025, edição nº 2948