Às margens do rio Yangtzé, o terceiro mais longo do mundo e a principal artéria da região industrial da China, está em curso um experimento ambiental profundo.
Antes visto como um símbolo dos excessos do crescimento chinês, o Yangtzé tornou-se agora o palco de um dos maiores projetos de restauração ecológica do planeta.
A reportagem de VEJA percorreu as margens do rio para averiguar como estão os eforços da China para limpá-lo.
Nos últimos anos, a China tem tentado reverter o colapso ambiental do seu rio mais emblemático. E no centro dessa virada está Chongqing, a megacidade de 32 milhões de habitantes localizada nas nascentes da bacia do Yangtzé.
Um rio levado ao limite
Durante décadas, o Yangtzé carregou o peso do crescimento vertiginoso da economia chinesa.
Com mais de 6.300 quilômetros, do planalto do Tibete até o mar da China Oriental, o rio virou um canal de despejo de resíduos industriais, esgoto doméstico e produtos químicos agrícolas.
Um relatório do Ministério da Ecologia e Meio Ambiente da China, publicado em 2011, revelava que cerca de 30 bilhões de toneladas de efluentes eram despejados no rio anualmente.
Mais de 40% dos afluentes não atingiam os padrões mínimos de qualidade da água. Em diversos trechos, os níveis de oxigênio estavam tão baixos que a biodiversidade local colapsou. Espécies nativas desapareceram. O rio adoeceu.
O ponto de inflexão: a Lei de Proteção do Yangtzé
Em 2021, a China aprovou sua primeira legislação nacional dedicada exclusivamente a um rio, a Lei de Proteção do Yangtzé. Foi um marco institucional e político.
A nova norma impôs restrições severas à indústria poluente, limitou novas construções em áreas sensíveis e, acima de tudo, proibiu a pesca comercial em todo o curso do Yangtzé e seus afluentes por pelo menos dez anos.
A medida, descrita por ambientalistas como “a maior moratória pesqueira da história humana”, impactou diretamente cerca de 280 mil pescadores, que foram obrigados a abandonar uma prática secular.
Em contrapartida, o governo ofereceu treinamento, subsídios e novos empregos em monitoramento ambiental ou setores verdes.
O objetivo da moratória foi permitir a recuperação de estoques pesqueiros, como o esturjão-do-Yangtzé e a toninha-do-Yangtzé, ameaçados de extinção após décadas de sobrepesca e degradação.
As represas também são um problema. Mais de 50.000 barragens foram construídas na bacia do Yangtze desde 1950. Elas desviam e interrompem o fluxo natural do rio, o que afeta a vida selvagem e as pessoas.
Durante a construção da enorme barragem das Três Gargantas, a maior usina hidrelétrica do mundo, 13 grandes cidades, 140 vilas e 326 vilarejos foram total ou parcialmente submersos, e mais de 1 milhão de pessoas tiveram que se mudar.
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Chongqing: de poluidora a pioneira
Chongqing desempenha um papel central nesse esforço. Durante muito tempo associada à indústria pesada, a cidade está localizada no encontro entre os rios Yangtzé e Jialing — um ponto crítico da bacia hidrográfica.
Nos últimos anos, porém, a metrópole tornou-se um laboratório da transição ecológica chinesa.
Chongqing investiu bilhões de yuans na modernização do seu sistema de tratamento de esgoto, atingindo níveis de eficiência superiores aos padrões nacionais.
Em 2023, mais de 95% das águas residuais da cidade estavam sendo tratadas antes de chegar aos rios, um salto impressionante em relação à década anterior.
Ao longo da orla fluvial, antigos parques industriais foram relocados ou reformulados, dando lugar a corredores verdes, parques lineares e zonas de preservação ambiental.
Com apoio do governo central, Chongqing implementou uma política de tolerância zero à descarga ilegal de resíduos. Fábricas e empresas passaram a ser monitoradas em tempo real por meio de sensores, satélites e inteligência artificial.
Em 2024, mais de 500 empresas foram autuadas ou encerradas por violações ambientais.
A cidade também lidera uma ampla campanha de reflorestamento, com a criação de zonas-tampão ao longo das margens dos rios.
Entre 2015 e 2023, foram restaurados mais de 30 mil hectares de vegetação nativa, ajudando a filtrar poluentes e combater a erosão do solo, um dos maiores vilões da sedimentação no Yangtzé.

Sinais de recuperação
Os primeiros sinais de revitalização são bastante visíveis. Níveis de oxigênio estão em alta, espécies raras voltaram a ser registradas, e o ecossistema começa a se reequilibrar.
Em 2023, pesquisadores identificaram o retorno de peixes endêmicos em trechos do rio próximos a Chongqing, após anos de ausência. Já em abril deste ano, o Ministério da Agricultura anunciou que os estoques pesqueiros no alto Yangtzé cresceram mais de 20% desde o início da moratória.
A ONG WWF, que monitora a bacia do Yangtzé, descreveu Chongqing como “um modelo de transição ecológica em contexto urbano e industrial”.
O símbolo da nova ambição chinesa
A despoluição do Yangtzé vai além da recuperação ambiental. Tornou-se um símbolo do novo discurso estratégico da China: liderar a economia verde do século XXI.
O presidente Xi Jinping já declarou que “águas límpidas e montanhas verdes são riquezas inestimáveis”, uma máxima agora incorporada aos planos quinquenais do país.
No 14º Plano Quinquenal, metas ambientais ambiciosas foram traçadas, com foco em energia limpa, proteção hídrica e sustentabilidade urbana, e Chongqing aparece como uma peça-chave desse quebra-cabeça.
Experimentos com ônibus autônomos da Baidu, trens sem condutor da BYD e infraestrutura de “cidade-esponja” posicionam Chongqing como um laboratório da futura economia verde chinesa.

Baiheliang: a biblioteca submersa que conta a história do Yangtzé
No fundo do rio Yangtzé, em Chongqing, está um dos museus mais inusitados da China: o Museu Subaquático de Baiheliang, construído para preservar uma crista rochosa milenar coberta por inscrições históricas.
Gravadas entre os séculos VIII e XX, as marcas registram níveis da água, secas, cheias e poemas, um raro cruzamento entre ciência hidrológica e cultura tradicional.
Antes visível apenas durante a seca, Baiheliang foi submerso após a construção da represa das Três Gargantas.
Para evitar a perda desse patrimônio, a China criou um túnel de vidro submerso que permite ao público caminhar ao lado das inscrições, uma solução de engenharia que virou símbolo da nova relação do país com o meio ambiente.
“O museu não é apenas um resgate do passado. Ele representa a mudança de paradigma na gestão do Yangtzé, hoje foco de um ambicioso esforço de revitalização que inclui proibição da pesca, controle da poluição e recuperação ecológica. Baiheliang mostra que conservar um rio também é preservar sua memória”, diz Jiang Rui, diretor do Museu Subaquático.

Mas os desafios seguem gigantescos
Apesar dos avanços, o desafio ainda é imenso. O escoamento de agrotóxicos, o garimpo irregular e a poluição em áreas rurais continuam presentes. A fiscalização fora dos grandes centros ainda é limitada.
E especialistas alertam que, para consolidar a virada ecológica, a China precisará enfrentar sua dependência do carvão, que ainda representa mais de metade de sua matriz energética.
Ainda assim, o Yangtzé, que por tanto tempo foi um símbolo de sacrifício ambiental, começa a ganhar um novo significado: o de um país que já não quer mais escolher entre desenvolvimento e preservação.
À medida que um trem de alta velocidade corta a paisagem de Chongqing em silêncio, ladeado por áreas úmidas restauradas e uma selva urbana vertical, o novo retrato da China parece se desenhar: um equilíbrio difícil entre concreto, inovação e águas que voltam a correr limpas.
*o repórter viajou a Chongqing a convite do China Media Group.
