A moda deixou há muito tempo de ser apenas estética. No corpo certo e com o olhar certo, ela pode se tornar linguagem política, veículo de cultura e ferramenta de resistência. Essa é a essência do trabalho da estilista Day Molina, que reafirmou o papel da moda no ativismo ao assinar o figurino do Prêmio Chico Vive, espetáculo que celebrou o legado do líder seringueiro e ambientalista, Chico Mendes, assassinado há 37 anos e que teve seu legado celebrado na cerimônia no Teatro Cultura Artística, premiando jovens ambientalistas com projetos engajados na causa socioambiental.
Com ascendência indígena e uma trajetória que mistura design, ancestralidade e sustentabilidade, Day se define como uma contadora de histórias por meio do vestir. “Acredito muito na importância de aliar ecologia e moda. Essa é a essência do meu trabalho como criadora. Chico Mendes é uma grande inspiração de vida. O legado dele me mobiliza, emociona e toca”, disse a VEJA.
A estilista mergulhou na Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, para desenvolver uma coleção em homenagem ao ambientalista. Lá, ouviu familiares, amigos e companheiros de luta. Dessa experiência nasceram peças feitas com látex, madeira de castanheira, miçangas de açaí, couro de pirarucu, bordados manuais e tecidos naturais, produzidas junto a bordadeiras indígenas e extrativistas.
Esses materiais, que carregam em si o DNA da floresta, foram transformados em figurinos que cruzaram fronteiras — primeiro no desfile em São Paulo, depois em Paris, durante a Paris Fashion Week, na Runway Vision. E mais recentemente, nas vestes que deram corpo e unidade ao Prêmio Chico Vive, uma celebração que misturou arte, moda e consciência.
“Day trabalha não só com o modo de fazer que o legado de Chico Mendes defende — sustentável e com distribuição para a economia de base local —, mas também com a estética da floresta. Ela traz um pilar fundamental da cultura: a capacidade de carregar no corpo a identidade de um povo”, define Joana Henning, produtora e CEO do Estúdio Escarlate, que idealizou o espetáculo ao lado do diretor artístico, Rafael Dragaud.
Na cerimônia, Day vestiu Joana, Dragaud, os apresentadores Bruno Gagliasso e Aline Midlej, a família de Chico Mendes, além de artistas como Gleici Damasceno, Adanilo Reis e o músico Jonathan Ferr. Cada traje compôs uma narrativa visual da floresta, transformando o palco em extensão da Amazônia. “Tem que haver escuta, experiência e respeito para criar um produto onde existe uma sinfonia de vozes”, resume Dragaud.
Verbo de ação
Há um simbolismo poderoso no encontro entre arte, ativismo e moda. O figurino de Day Molina não foi apenas roupa: foi manifesto. Um lembrete de que o vestir pode ser verbo. E verbo de ação.
Curiosamente, Chico Mendes foi assassinado em 22 de dezembro de 1988, no mesmo dia em que o Brasil parava para descobrir quem matou Odete Roitman, no último capítulo de Vale Tudo. Enquanto a ficção matava uma vilã, a realidade tirava a vida de um herói. Décadas depois, Vale Tudo voltou às telas — e Chico também voltou a viver, reencarnado na arte e nas causas que o mantêm presente.
O figurino-ritual de Day Molina no Prêmio Chico Vive estampou que a moda é, antes de tudo, expressão. E que, quando feita com propósito, ela é capaz de vestir não só corpos, mas ideias. E de costurar, com beleza e consciência, o tecido de um novo tempo.
