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Divisão do bem: os desafios que a guarda compartilhada ainda enfrenta

Lá se vão quase cinco décadas desde que a juíza de paz Arethuza Figueiredo Aguiar solicitou a conversão de um desquite em divórcio, num cartório de Niterói, no Rio de Janeiro. O primeiro caso de dissolução legal dos laços matrimoniais, ocorrido em 1977, marcava, com anos de atraso em relação aos países da Europa, o reconhecimento pelo Estado de que amores e casamentos podem se apagar, posto serem chama. O avanço da lei, no entanto, não foi suficiente para equilibrar a balança quanto à responsabilidade na educação e no cuidado dos filhos, que ainda hoje pende mais para o lado das mães. Uma divisão mais igualitária só passou a ser possível em 2014, quando uma mudança no Código Civil instituiu a guarda compartilhada como regra geral das separações. Uma década depois, a saudável medida, que visa ao interesse da criança e consolida a ideia de que homens e mulheres têm papéis equivalentes na sociedade, dá mostras de já não autorizar recuos, embora a implantação da postura na prática ainda esbarre em uma série de desafios.

arte guarda compartilhada

Os tempos em que as visitas dos pais se resumiam a encontros quinzenais e passeios nos fins de semana ficaram para trás. Levantamento do IBGE aponta que a guarda compartilhada disparou de 7,5%, em 2014, para quase 38% atualmente (veja no gráfico), refletindo não apenas as mudanças na legislação, mas também profundas transformações culturais. “A ideia rígida de que o homem é o provedor e a mulher é a dona de casa entrou em choque com um mundo de mais autonomia e liberdade”, diz o antropólogo Bernardo Conde. “A guarda compartilhada é a resposta para uma nova configuração familiar.” A atriz Luana Piovani, 48 anos, que não esconde ter vivido às turras com o surfista Pedro Scooby, 36, com quem teve três filhos, logo notou as vantagens de uma partilha mais justa. Morando em Portugal, ela cedeu aos apelos do primogênito, de 13 anos, de viver com o pai no Brasil. “Meu filho está mais feliz, meu ex-­marido virou um pai melhor, mais responsável. Foi a melhor coisa que fiz na vida”, disse ao Fantástico, da TV Globo. Procurada por VEJA, ela preferiu não comentar o assunto.

“AMO TER DUAS CASAS” - A partilha depois da separação foi um divisor de águas na vida da estudante Maria Lins, 23 anos (no centro). Aos 9, foi chamada pelos pais, Juliana e André, para receber a notícia de que eles iriam se separar, o que, de cara, pareceu assustador e traumático. “Me tranquei no quarto e passei o dia inteiro chorando. Hoje, amo ter duas casas”, conta ela, que não demorou em se adaptar à nova rotina.
“AMO TER DUAS CASAS” – A partilha depois da separação foi um divisor de águas na vida da estudante <strong>Maria Lins</strong>, 23 anos (no centro). Aos 9, foi chamada pelos pais, <strong>Juliana</strong> e <strong>André</strong>, para receber a notícia de que eles iriam se separar, o que, de cara, pareceu assustador e traumático. “Me tranquei no quarto e passei o dia inteiro chorando. Hoje, amo ter duas casas”, conta ela, que não demorou em se adaptar à nova rotina../Arquivo pessoal

Ao contrário do que possa parecer, a guarda compartilhada não prevê que as crianças permaneçam a mesma quantidade de tempo com as duas margens do ex-casal, mas ambos têm o poder de decisão e participação, em pé de igualdade, na vida dos filhos. É costura que passa por todo tipo de escolha: da escola às atividades extracurriculares e, claro, ao regime de estadias na casa de cada um. “Embora separada, a família ainda existe”, afirma a advogada Letícia Peres, especializada em direito da família. “O arranjo exige dos pais a capacidade de construir consensos.” Não são raras, porém, as situações em que as conversas descambam para discussões acaloradas e trocas mútuas de acusações. É o caso do menor L., 5 anos, filho de Marília Mendonça. Em decorrência da morte da cantora em um acidente aéreo, em 2021, a guarda do menino passou a ser dividida entre o pai, o sertanejo Murilo Huff, 29, e a avó materna, Ruth Moreira, 56. O acordo, porém, foi rompido depois de ele reverter a decisão na Justiça, alegando que a convivência era marcada por “conflito constante, instabilidade, indícios de alienação parental e prejuízos à saúde e ao desenvolvimento físico e emocional do menor”. Nenhum dos envolvidos aceitou conversar com VEJA, mas Ruth já afirmou prometer lutar para retomar o arranjo anterior.

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A dificuldade de deixar as diferenças de lado é um dos fatores que contribuem para a guarda compartilhada ainda não ser majoritária no Brasil. O regime costuma ser adotado em consonância entre os pares, mas também pode ser determinado pelo juiz, se eles discordarem quanto aos cuidados dos filhos. Nesse caso, é necessário que ambos estejam aptos para a tarefa. Um dos lados pode conceder a guarda à outra parte, mas as obrigações de convivência e o pagamento de pensão alimentícia continuam a existir. “É muito comum que pais e mães entrem com ações solicitando a revisão da concessão da guarda unilateral por perceberem que o modelo não atende às necessidades da criança, nem permite o envolvimento real do outro genitor”, diz Fernando Felix, advogado especializado em casos de família. Determinar os cuidados sob a responsabilidade de uma só pessoa, alertam os especialistas, deveria ser solução apenas para quadros de violência, quando a decisão passa a ser considerada uma questão protetiva.

EM NOME DOS FILHOS - Pai de Theo, 10 anos (à esq.), e Tito, 7, o arquiteto Rafael Gomes, 40, se esforçou para chegar a um acordo com a ex-mulher e pôr o interesse dos filhos à frente das diferenças que levaram ao divórcio. “Separamos o que era o fim da relação conjugal de nossos papéis como pai e mãe, situação que vai durar para sempre”, diz o carioca, que divide todas as decisões com a mãe dos meninos
EM NOME DOS FILHOS – Pai de <strong>Theo</strong>, 10 anos (à esq.), e <strong>Tito</strong>, 7, o arquiteto <strong>Rafael Gomes</strong>, 40, se esforçou para chegar a um acordo com a ex-mulher e pôr o interesse dos filhos à frente das diferenças que levaram ao divórcio. “Separamos o que era o fim da relação conjugal de nossos papéis como pai e mãe, situação que vai durar para sempre”, diz o carioca, que divide todas as decisões com a mãe dos meninos./Arquivo pessoal

Ainda que a convivência se dê em termos civilizados, ver os pais seguindo caminhos diferentes e ter de estabelecer, de uma hora para outra, uma rotina intensa de vaivéns pode ser um tanto penoso para os filhos, principalmente se os combinados não estiverem meticulosamente estabelecidos. Até nos divórcios mais ressentidos, contudo, começa a haver alguma convicção: é melhor oferecer dois lares afetuosos do que forçar os filhos a viverem em um ambiente de permanentes brigas de casal. “Quando soube da separação dos meus pais, me tranquei no quarto e passei o dia chorando, mas logo depois amei ter duas casas, poder morar em bairros diferentes, fazer várias coisas com cada um deles”, diz a estudante Maria Lins, 23 anos, que aos 9 teve de se adaptar à nova realidade.

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Por mais que os manuais não se cansem de frisar a relevância de um diálogo honesto e respeitoso entre ex-companheiros, superar as dores e os ressentimentos de uma separação é tarefa árdua. A mediação profissional com advogados e psicólogos especializados pode ser crucial para firmar pactos sólidos, que atendam ambos os lados e possam ser seguidos sem ensejar novas desavenças. “A forma como os pais vão lidar com o assunto, com as negociações e com a comunicação é o que pode facilitar ou dificultar a situação da criança”, afirma Marta Souza, da Sociedade Brasileira de Psicologia. “Se eles estiverem presentes na vida dos filhos, já é um grande passo.” Exemplo disso é a história do arquiteto Rafael Gomes, 40 anos. Quando ocorreu o divórcio, ele entendeu que Theo, 10, e Tito, 7, viriam em primeiro lugar. “Eu e minha ex-mulher sempre conseguimos dividir muito bem o que era o fim da relação do que era nossa vida como pai e mãe, que é para sempre”, diz.

1977 - Campanha pelo divórcio: lei abriu caminho para relações igualitárias
1977 - Campanha pelo divórcio: lei abriu caminho para relações igualitáriasSenado Federal/Arquivo

Para os filhos, ter pais capazes de se darem bem depois que o amor acaba pode ser crucial. Nos casos de crianças pequenas, em pleno desenvolvimento da primeira infância — fase em que elas aprendem por imitação a pensar, se comunicar e sentir —, a presença harmoniosa dos genitores é fundamental para que ela cresça se sentindo amada e segura. Já na adolescência, momento de intensas transformações hormonais e sociais, conviver com pais que se respeitam pode se tornar um rico processo de aprendizagem sobre comportamentos que são, ou não, aceitáveis na vida adulta. “É fundamental que os pais falem bem um do outro para a criança, porque ela é fruto daquela união”, diz a psicanalista Renata Bento. “Se ela percebe que as pessoas que representam sua base brigam o tempo todo e não se gostam, terá muita dificuldade em confiar nos outros.” Se não há mais bons motivos para seguir vivendo como marido e mulher, sobram razões para cultivar uma boa relação na condição de divorciados, se possível, dentro do arranjo de uma guarda compartilhada para os filhos.

Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2025, edição nº 2955

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