Recebemos com otimismo a notícia de que o SUS passou a oferecer diagnóstico precoce do transtorno do espectro autista (TEA) e atenção especializada desde os primeiros sinais do desenvolvimento infantil. A iniciativa, anunciada pelo Ministério da Saúde no mês de setembro, inclui na rotina da atenção primária a aplicação do teste M-Chat em bebês de 16 a 30 meses de idade. Com essa triagem, intervenções e estímulos adequados podem ter início antes mesmo do diagnóstico fechado, ampliando as chances de autonomia, comunicação e socialização da criança. É claro que, para dar frutos, a nova abordagem deve estar integrada a políticas públicas de inclusão, educação, trabalho e assistência social. Ao mesmo tempo, precisamos manter o estado de alerta diante das investidas do negacionismo científico.
Recentemente, autoridades dos Estados Unidos relacionaram o uso de paracetamol durante a gestação com o autismo. Fizeram o mesmo que têm feito em relação às vacinas, investigadas como possível causa do TEA. Essa obsessão pela busca de uma causa singular para um quadro complexo, além de ser simplista, traz uma série de consequências negativas, entre as quais o reforço do estigma, que nos esforçamos por eliminar, e, na outra ponta, hesitação vacinal e procura de alternativas não científicas de tratamento.
O número de diagnósticos de autismo nos Estados Unidos, de fato, aumentou significativamente nos últimos 25 anos, mas não por uma suposta causa farmacológica, como foi a talidomida nas décadas de 1950 e 1960, depois associada à má-formação fetal. Houve, isto sim, uma mudança nos critérios de diagnóstico e maior conscientização da sociedade, o que reduziu a subnotificação de casos. Desde 2013, com o DSM-5, consagrou-se uma reclassificação do quadro, que passou a ser chamado de “transtorno do espectro autista”, incluindo um conjunto de características típicas, que se alternam ou se agrupam, determinando diferentes graus.
Como nem todas as pessoas apresentam exatamente os mesmos sinais, não havendo um marcador detectável em exame, o diagnóstico depende da análise de escalas. Crianças podem ter, em maior ou menor grau, dificuldades na linguagem, na interação social e no comportamento. Podem apresentar interesse intenso e prolongado por certos temas ou objetos, comportamentos repetitivos, seletividade alimentar, hipersensibilidade auditiva e visual e outras características que requerem análise clínica apoiada por observações e relatos de familiares.
Embora tenha evoluído bastante, o diagnóstico continua sendo um desafio e é, essencialmente, individualizado, assim como o tratamento. Nesse sentido, a nova linha de cuidado do SUS, além do correto incentivo do rastreio precoce, acerta no fortalecimento do Projeto Terapêutico Singular (PTS), que, desde 2023, integra a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência. Com essa medida, foi possível direcionar 20% de aumento no custeio mensal dos Centros Especializados em Reabilitação que atendem autistas. O PTS vem sendo usado como uma ferramenta importante na elaboração de um plano de tratamento individualizado para os pacientes, construído por equipes multiprofissionais em parceria com as famílias.
Definem-se metas com base em um primeiro diagnóstico situacional, obtido pelo levantamento das necessidades clínicas, sociais, emocionais e educacionais da pessoa com TEA. Em seguida, é feito um plano de ações, com escolha de terapias e intervenções adequadas ao caso (fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia, apoio escolar), com cronograma e responsáveis definidos. A avaliação é realizada por meio de acompanhamento contínuo, o que permite ajustar o plano conforme haja avanços ou novas demandas. Além disso, o SUS também passou a oferecer orientação parental, grupos de apoio e capacitação para cuidadores, reconhecendo o papel central das famílias no processo de desenvolvimento da criança.
É claro que há linhas de investigação sérias sobre fatores biológicos e mesmo farmacológicos que podem concorrer para o surgimento de quadros de TEA, como prematuridade, desnutrição intrauterina, diabetes, pré-eclâmpsia e uso de ácido valproico (presente em medicamentos para epilepsia, transtorno bipolar e enxaqueca) durante a gestação. Em outra frente, há pesquisas sobre efeitos da exposição pré-natal a agrotóxicos, à poluição e a disruptores endócrinos (substâncias de origem petroquímica), que podem atravessar a placenta e atingir o feto, ocasionando alterações na expressão gênica, na formação de conexões neurais e na regulação emocional. Enquanto a ciência avança, temos de usar todas as ferramentas disponíveis, com o concurso de diversas áreas do conhecimento, para lidar com a complexidade do TEA, considerando no seu centro o tratamento humanizado em direção à melhoria da qualidade de vida e à inclusão social.
Hoje o TEA não é considerado uma doença, mas uma condição, como o são as deficiências físicas, por isso não se fala em “cura”. Um dado muito interessante é que alguns traços típicos do espectro autista sugerem aptidões avançadas, entre as quais alta concentração, memória extraordinária para detalhes, ouvido absoluto e preferência por rotinas, que podem ser trabalhadas positivamente. É por isso que autistas são chamados de neurodivergentes.
Perceber o autista como neurodivergente é uma forma de combater estigmas e de promover a sua inclusão seja na escola, seja no trabalho, seja em quaisquer situações da vida social. A formação de profissionais especializados e a criação de espaços de acolhimento são fundamentais para que as pessoas com TEA, que hoje representam 2,4 milhões de brasileiros (o equivalente a 1,2% da população), tenham acesso a uma vida plena, com respeito, oportunidades e pertencimento.