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Depois dos 70

Já fiz mais de 70 anos, estou indo rumo aos 80. Quando eu era criança, achava que alguém de 30 era velho, de 40 um ancião. Tive sorte: cheguei aqui em boa saúde. Quebrei a perna direita faz um tempo e ainda estou consertando. A boa notícia é que, com fisioterapia e cuidado, ficará boa. Eu me achava um afortunado. Até descobrir que a sociedade não acha. E que com a idade perdi vários direitos. Não posso me casar sem provar que estou no uso de plenas faculdades mentais. A lei exige. Curioso: existe amor que sobreviva ao teste de sanidade? O casamento em si já é um sintoma de loucura mansa. Quem se compromete a dividir o armário, o controle remoto e a vida inteira precisa ter, no mínimo, uma queda pela insanidade. A lei me pede laudo médico, mas o amor nunca pediu. O amor se alimenta justamente do que escapa à razão.

A generosidade também. Outro dia descobri que, para fazer uma doação, muitas vezes pedem também o laudo atestando que estou em plenas faculdades mentais. Achei engraçado. Passei a vida toda dando coisas: conselhos que ninguém pediu, risadas em horas impróprias e, loucura das loucuras, emprestei dinheiro a amigo. Perdi, é claro, o dinheiro e o amigo. E ninguém me pediu atestado de sanidade. Mas se quero doar oficialmente, aí sim, é preciso provar que não enlouqueci. Como se fosse coisa de louco doar.

“Com a idade, ganhei o direito de ser livre. Quero viajar, viajo. Se namorar alguém jovem, e daí?”

Louco mesmo é acumular. Juntar quinquilharia até o armário implorar por socorro. Loucura é guardar a calça de 1978 achando que um dia vai voltar à moda (e ao corpo). De certo modo, entendo a burocracia. O medo é que alguém diga: “Ele não sabia o que estava fazendo”. Mas vamos combinar? Ninguém sabe sempre exatamente o que está fazendo. A vida é um improviso mal ensaiado. A verdade é que doar exige sanidade, sim, mas do coração. Só quem tem cabeça boa entende que a vida fica mais leve quando a gente reparte. Talvez esse laudo médico seja simbólico: a verdade é que doar não é um ato de sanidade, mas de grandeza.

No Brasil, depois dos 70, a pessoa já não tem juízo próprio. É a lei que afirma. Para certas decisões, preciso de atestado, testemunho, carimbo e, se bobear, até a assinatura do papa — embora boa parte dos papas comande a Igreja depois dos 70. Curioso, porque é justamente depois dos 70 que muita gente encontra o melhor juízo de todos: o de mandar o mundo às favas e viver como bem entende.

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Aos 20, precisei provar que tinha maturidade. Aos 40, responsabilidade. Aos 60, me pediam equilíbrio cada vez que eu perdia a paciência. Mas aos 70… Ah, aos 70, descobri o direito de ser livre. Quero viajar, viajo. Quero dançar, danço. E se quiser namorar alguém vinte ou trinta anos mais jovem? A vizinha vai comentar, e daí? Já aprendi que vizinha comenta até quando chove. No fundo, esse papo de não ter “juízo próprio” é a burocracia tentando domesticar a liberdade individual. Mas de uma coisa tenho certeza, meus amigos, liberdade não cabe em carimbo de cartório.

Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2025, edição nº 2961

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