counter De Rivotril a Zolpidem: quando esses remédios são indicados e os riscos do uso indiscriminado – Forsething

De Rivotril a Zolpidem: quando esses remédios são indicados e os riscos do uso indiscriminado

Dificuldade para dormir, crises de ansiedade, sensação de pânico… Para muitos brasileiros, a solução parece caber em um comprimido — e, não raro, tem nome conhecido: clonazepam (vendido como Rivotril), diazepam, lorazepam e outros fármacos da família dos “pam”. Todos pertencem à mesma classe de medicamentos, os benzodiazepínicos, ansiolíticos e sedativos desenvolvidos para acalmar a mente e o corpo, aliviando sintomas como ansiedade e insônia.

A história desses remédios começou nos anos 1960, em um momento em que o mundo se encantava pelos psicotrópicos. Primeiro veio o clordiazepóxido, lançado como Librium, seguido logo depois pelo diazepam. Vendidos como “mais seguros” que os barbitúricos — drogas associadas a mortes famosas, como a de Marilyn Monroe —, os benzodiazepínicos se tornaram símbolo de bem-estar, sobretudo para as mulheres: a mãe que cuidava dos filhos sem colapsar e mantinha o sorriso apesar das tensões do lar.

“Diferentemente dos barbitúricos, cujo risco de overdose é alto, esses fármacos possuem um perigo letal baixo. Geralmente, a o risco de overdose só acontece se você misturar com outras substâncias”, explica o psiquiatra André Negrão, coordenador do Ambulatório de Sedativos e Hipnóticos do Centro de Álcool e Drogas do Instituto Perdizes da USP.

E foi justamente esse discurso que impulsionou a popularidade. Campanhas de marketing e prescrições em massa transformaram os “benzo” em um atalho seguro para lidar com o sofrimento emocional, algo que segue firme até hoje. Para ter ideia, só em 2024, foram vendidas mais de 130 milhões de caixas desses medicamentos no Brasil, sendo 31 milhões apenas de clonazepam – números que colocam o país entre os maiores consumidores dessa classe de medicamentos do mundo.

Quando os benzodiazepínicos são realmente indicados

Na medicina, esses medicamentos ainda têm papel importante. São usados em crises agudas de ansiedade, ataques de pânico, insônia grave e momentânea ou como coadjuvantes no tratamento de convulsões.

“Eles são excelentes para momentos de crise”, afirma Negrão. “Pense em alguém que acabou de perder tudo em uma enchente ou tem pavor de viajar de avião: em situações assim, o remédio ajuda a sedar, reduzir a agitação e aliviar o sofrimento imediato — algo que outras medicações, como sertralina ou duloxetina, levam semanas para alcançar.”

Continua após a publicidade

O problema começa quando o uso se estende. O tratamento contínuo — aquele em que a medicação é tomada diariamente e não em episódios pontuais —, segundo os protocolos atuais, não deve ultrapassar quatro semanas. Do contrário, se a mortalidade não entra em cena, a morbidade sem dúvidas é uma questão.  Isso porque o corpo desenvolve tolerância, ou seja, precisa de doses cada vez maiores para obter o mesmo efeito.

Do outro lado da moeda, surgem uma cascata de problemas. A dependência é a principal deles, caminhando em paralelo com crises de abstinência quando há tentativa de interrupção. “A pessoa tem taquicardia, sudorese, tontura, insônia, sensação de cabeça ‘fora do ar’… e acaba usando o medicamento para lidar com a própria falta dele”, explica Negrão.

Além disso, a memória também sai prejudicada. Isso porque os benzodiazepínicos atuam sobre o receptor GABA, principal responsável por “inibir” o sistema nervoso central. “Esse receptor faz o neurônio parar de funcionar ou reduzir seu funcionamento. Por isso, é comum se sentir meio paralisado, apático ao mundo. As faculdades mentais não funcionam direito, a memória fica comprometida, você perde o ‘freio’, acaba esquecendo restrições e regras…”, detalha Negrão. Ele acrescenta que, muitas vezes, esse “modo lento” do cérebro é confundido com depressão. E quando as pessoas buscam tratamento, acabam recebendo outra leva de medicações, criando uma grande “bola de neve”.

A memória, segundo a neurologista Andrea Bacelar, especialista em Medicina do Sono, deve ser encarada como uma das principais preocupações no uso indevido desses medicamentos, especialmente porque uma parte significativa dos usuários dos “benzo” são pessoas mais velhas, que mantêm o hábito como um gesto quase ritualístico. Ao mesmo tempo, a expectativa de vida no Brasil vem crescendo a passos largos, assim como as doenças neurodegenerativas. “Antigamente, com a longevidade menor, muitos nem chegavam a desenvolver demência. Hoje, recebo pacientes de 80, 90 anos que usam esses remédios. A memória simplesmente não aguenta”, alerta Bacelar.

Continua após a publicidade

“Drogas Z”: a nova geração que prometia ser mais segura

Nos anos 1990, chegou ao mercado uma nova geração de medicamentos para dormir, apelidados de “drogas Z”, entre eles o Zolpidem. Diferentemente dos benzodiazepínicos, eles atuam de forma mais seletiva, tendo uma ação especifica sore os circuitos cerebrais do sono, o que parecia torná-los uma opção menos arriscada para as crises de insônia. E, por um tempo, a promessa convenceu. “Realmente acreditamos que seriam medicamentos sem potencial de dependência”, conta Bacelar.

A virada de chave aconteceu recentemente, com a explosão de prescrições durante a pandemia de covid-19. Segundo a Anvisa, foram quase 22 milhões de caixas comercializadas em 2021 — 3 milhões a mais que em 2019. Com esse ‘boom’, especialistas começaram a enxergar o que havia passado despercebido. Casos de dependência, consumo abusivo e relatos de amnésia se multiplicaram: pessoas gastando fortunas sem lembrar depois — de passagens aéreas a um jovem que comprou um bezerro — ou se envolvendo em acidentes. “Os pacientes chegavam ansiosos, saltitando e dizendo: ‘Só vim pegar receita’. Um verdadeiro ‘shopping médico’”, descreve Bacelar.

Os riscos das Drogas Z — e quando realmente devem ser usadas

Assim como os benzodiazepínicos, a tolerância também é uma das questões das Drogas Z. Por terem meia-vida curta, essas medicações agem rápido, mas o efeito passa na mesma proporção, o que incentiva a repetição de doses e a dependência. Além disso, com o tempo, a medicina descobriu que, em doses elevadas, essas substâncias podem gerar uma sensação de bem-estar, o que estimula o uso recreativo. “É um problema muito brasileiro. Não há algo nesse mesmo nível em outros locais”, diz a neurologista. Entre os fatores que explicam essa particularidade estão o mercado paralelo e a variedade de formulações disponíveis, como as sublinguais — uma estrutura que também pavimentou a crise dos opioides nos Estados Unidos.

Outro fenômeno é a amnésia associada à parassônia, quando o cérebro fica parcialmente desperto e parcialmente adormecido. Isso acontece porque esses fármacos reduzem a atividade cerebral em regiões envolvidas com vigilância e controle motor, mas não “desligam” completamente áreas associadas à execução de comportamentos automáticos. Ou seja: o cérebro entra em um estado misto entre sono e vigília, em que a pessoa parece acordada, mas sem consciência plena. “É em meio a isso que as pessoas mandam mensagens e não se lembram, dirigem, fazem compras absurdas, e por aí vai”, explica Bacelar.

Continua após a publicidade

A abstinência também costuma ser mais grave. Além dos sintomas físicos típicos dos benzodiazepínicos — como ansiedade, sudorese e insônia —, há risco de crises convulsivas. “Isso acontece porque o receptor inibitório do sistema nervoso central, quando deixa abruptamente de estar ocupado pela substância, pode gerar uma atividade irritativa grave. Inclusive, não é incomum que pacientes que usam o medicamento em grandes proporções precisem ser internados durante o processo de retirada”, detalha a especialista.

Hoje, as Drogas Z seguem, em linhas gerais, a mesma linha de prescrição do clonazepam e família: devem ser indicadas apenas em crises agudas de insônia — ou seja, quando não há possibilidade de aguardar os efeitos de outras alternativas —, com tempo máximo de uso de duas a quatro semanas. O que se observou é que, a partir desse ponto, se o paciente ainda precisa do remédio, significa que o problema de base não foi tratado. E, a partir daí, começa-se a gerar uma necessidade, tanto biológica, do receptor, quanto emocional.

Apesar de essa ser a recomendação ouro, há espaço para individualização. “Em alguns casos, o paciente melhora, mas ainda precisa de suporte. Aí ajustamos, por exemplo, para três vezes por semana. O importante é que o uso tenha início, meio e fim, e tudo seja combinado com o paciente, ajustando a dose para evitar riscos”, diz Bacelar.

A neurologista destaca também que atualmente há outras medicações mais seguras, que podem ser consideradas quando a insônia vem acompanhada de fatores clínicos, psiquiátricos ou de outros distúrbios do sono. “A gente precisa entender a história completa desse paciente para decidir o melhor caminho. Não existe receita de bolo. Cada um vai se beneficiar mais de um ou de outro tratamento. Essa é a essência da individualização.”

Segundo a médica, existem também grupos para os quais o uso das Drogas Z é especialmente contraindicado. “Há pessoas com muito mais chance de desenvolver dependência: quem já usou tranquilizantes previamente, tem histórico de alcoolismo, doenças psiquiátricas em tratamento prolongado, comportamento impulsivo, tentativa ou pensamento suicida. Essas pessoas não devem ser expostas a essas substâncias — nem por um mês, nem por quatro semanas.”

Publicidade

About admin