Um dos principais cientistas do clima do país, o físico Paulo Artaxo, professor da USP e integrante do IPCC, diz que a COP30 expôs “interesses geopolíticos de curtíssimo prazo” e uma resistência ativa de países produtores, como a Arábia Saudita, que, segundo ele, “defende o petróleo ao infinito, não importa o que aconteça com 7 bilhões de pessoas”.
Em entrevista a VEJA, Artaxo, que hoje atua como coordenador do Centro de Estudos Amazônia Sustentável da USP, afirma que, se conseguir entregar um mandato para a criação de um roadmap global que organize o fim dos combustíveis fósseis, a COP30 pode se tornar “a mais importante desde Paris”.
Para ele, o Brasil exerceu uma liderança “impecável” em meio ao cenário internacional mais tenso das últimas décadas.
1. Como o senhor avalia o andamento da COP30 até agora? Há um descompasso entre a urgência científica e o ritmo político das negociações?
A sua pergunta é quase óbvia. Há, sim, um descompasso entre a urgência científica e o jogo de interesses geopolíticos que cada país defende nas negociações.
Nenhum está olhando verdadeiramente para o planeta. Estão focados em seus interesses no curto prazo, e isso ficou ainda mais evidente na COP30, porque o cenário geopolítico se tornou muito mais complexo do que nas últimas conferências.
Nas mesas de negociação, vemos a Arábia Saudita defendendo o petróleo ao infinito, sem importar o que aconteça com 7 bilhões de pessoas. É exatamente o mote da indústria do petróleo: maximizar lucros agora, mesmo sabendo que o planeta pode aquecer até 4 °C. Essa pressão segue muito forte.
A grande novidade foi a repercussão do discurso do presidente Lula na abertura e o ponto enfatizado pelo embaixador e pela Ana Toni: esta tem de ser a COP que defina um caminho justo e com metas claras para abandonar os combustíveis fósseis. Não vai acontecer em um, cinco ou dez anos, mas é essencial ter uma rota.
Se a COP conseguir aprovar algum documento que estabeleça uma comissão para estruturar esse caminho, pode se tornar, junto com Paris, a mais importante das 30 realizadas até agora. A conferência não vai decidir o fim dos fósseis aqui, mas pode dar um mandato para que um grupo de países trabalhe nessa direção.
2- Os países produtores de petróleo são o único gargalo?
Não. Há, por exemplo, os países em desenvolvimento, especialmente os africanos, encaram a COP como uma fonte de recursos financeiros. Querem dinheiro, de modo geral.
E esse também é um problema, porque os recursos disponíveis hoje são menores do que há quatro anos, devido ao aumento dos gastos de defesa na Europa, à saída dos EUA e a tensões econômicas globais. Isso aparece claramente nas negociações.
3- O Brasil aposta na criação de um mapa global para a transição dos combustíveis fósseis. Quão realista é essa iniciativa?
A proposta já teve aprovação do Reino Unido, da Dinamarca, da Colômbia e apoio político importante, especialmente da Alemanha e da Inglaterra. Tem boas chances. Mas o jogo diplomático não segue a nossa lógica. Mesmo assim, já foi referendada por mais de 35 países, o que é excelente.
4- O grande debate da COP30 é sobre “transição” versus “eliminação” dos fósseis. O texto final tende a refletir a pressão dos produtores ou o consenso científico?
Não existe transição imediata. Será um abandono progressivo e justo. E justo significa começar pelos países mais ricos e avançar depois para os em desenvolvimento.
Há boas chances de avanço porque os eventos climáticos extremos estão se agravando e, economicamente, a geração eólica e solar já é mais barata do que queimar fósseis.
Esse argumento é fortíssimo para acelerar a transição para energias limpas. Mas o que faz sentido para nós, cientistas, não é necessariamente o que passa na cabeça dos diplomatas.
5- Como o senhor avalia a liderança do Brasil na COP?
O Brasil teve uma condução impecável, reconhecida por praticamente todos com quem conversei. A atuação do embaixador André Corrêa do Lago foi fantástica: brilhante, respeitando a autonomia de cada país e, ao mesmo tempo, enfrentando um cenário geopolítico extremamente complexo.
6- Esta COP trouxe compromissos concretos sobre desmatamento zero, bioeconomia e florestas tropicais?
A área de florestas é uma das mais avançadas. O fundo proposto pelo ministro Fernando Haddad é uma ideia brilhante: hoje, os ecossistemas sequestram 22% das emissões globais.
Manter esse sumidouro é fundamental. Se acelerarmos o desmatamento, esses 22% podem ser muito reduzidos ou até desaparecer. É um risco real, especialmente diante da aceleração das mudanças climáticas. É um bom negócio até para a indústria do petróleo manter esse sumidouro funcionando.
7- Há avanços reais na governança climática global ou estamos repetindo promessas?
A COP pode entregar avanços concretos em duas frentes: financiamento para países em desenvolvimento acelerarem a transição e a adaptação; e a criação de um comitê para desenhar o roadmap que leve ao fim da exploração de petróleo.
Ficou muito claro que precisamos trabalhar pesado em adaptação; isso ajuda demais os países em desenvolvimento, que não têm recursos. A agenda global de adaptação também avançou.
8- Qual deve ser o tom do texto final?
Se o documento final incluir a criação de um grupo de trabalho encarregado de elaborar o roadmap para o fim dos fósseis, esta pode ser a COP mais importante de todas.
O Acordo de Paris estruturou mecanismos de redução, mas não tocou no “elefante na sala”, que são os combustíveis fósseis. As NDCs não obrigam os países a eliminá-los. Se a COP30 incluir esse passo, será histórica.
9- Considerando o cenário político global, inclusive com o retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, que retrocessos podemos esperar nos próximos anos?
A indústria do petróleo vai continuar tentando vender o máximo de fósseis possível, com uma visão de curtíssimo prazo.
Isso já aparece: a Petrobras comemorando novos campos na Bacia de Campos e investimentos na Margem Equatorial; a Total, da França, ampliando prospecção e reduzindo investimento em renováveis. Essa tendência vai seguir.
O posicionamento de Washington, é claro, acelera isso, já que o país está revertendo políticas de renováveis.
Mas há um fator decisivo: a economia. As energias renováveis já são muito mais baratas do que queimar petróleo. A questão econômica vai pesar porque afeta a competitividade dos países no seu pilar mais elementar de desenvolvimento, que é a geração de energia. Isso tende a aumentar progressivamente o uso de fontes limpas.
10- O que nos aguarda caso a COP fracasse?
Não temos muito tempo para reverter o cenário. Mesmo com uma transição total até 2050, o planeta pode aquecer 3°C; no Brasil é ainda pior, 4°C. Estaríamos virtualmente fritos. A produtividade do agronegócio cairia muito, e o país teria de buscar outra estratégia, porque o agro não funcionaria mais nesse cenário. Esse é o nível de incerteza e de risco que estamos enfrentando.