Uma corretora de imóveis na cidade de Várzea Grande, no Mato Grosso, sofreu um grave episódio de violência durante uma visita profissional. Ao atender um suposto cliente interessando em comprar um imóvel, ela acabou sendo vítima de estupro e ameaça. O caso gerou forte comoção entre colegas e expôs, mais uma vez, a fragilidade da segurança das corretoras de imóveis em seu ambiente de trabalho.
Diante da indignação, o influenciador e corretor de imóveis Israel Pires, baiano radicado em São Paulo, decidiu tomar uma atitude. De maneira inflamada, tocado pelo absurdo do episódio, ainda que tenha acontecido por uma profissional que ele desconhece e em outro Estado, Pires gravou um vídeo em sua rede social e, iniciou um movimento espontâneo, buscando conscientizar o setor e a sociedade sobre a importância de proteger e valorizar as corretoras de imóveis. A iniciativa, que nasceu de forma orgânica, começa a se espalhar como um apelo por respeito, segurança e responsabilidade compartilhada entre todos os envolvidos na cadeia imobiliária. “Cerca de 70% dos meus seguidores são do sexo feminino. Ainda que não fosse assim, me sensibilizei demais com a violência que essa colega sofreu, por solidariedade e compaixão. Ninguém deve se sentir amedrontado durante o exercício de sua profissão e esse caso evidenciou o quanto as mulheres estão desprotegidas e correndo risco apenas pelo simples fato de trabalhar”, explica ele.
Após a postagem do seu vídeo que acompanhava também um selo com os dizeres “Com correta, o limite é a lei” e a divulgação do canal 180 para denúncia, o corretor afirma ter recebido diversos relatos de colegas mulheres sobre assédio e ameaça que também viveram em seu ambiente profissional. A maioria, no entanto, é relutante em denunciar em função do medo, seja de perder um trabalho, de expor sua imagem e ou mesmo de retaliação por seus superiores.
Apesar de ser um setor onde a presença feminina cresce ano após ano, o mercado imobiliário ainda é, em sua base de comando, um ambiente fortemente masculino e, muitas vezes, marcado por uma cultura machista. A maioria dos cargos de presidência, diretoria e liderança em grandes imobiliárias, incorporadoras e conselhos regionais é ocupada por homens. As decisões, o discurso dominante e as posturas institucionais ainda refletem uma lógica que frequentemente silencia, minimiza ou ignora as experiências das mulheres dentro do setor.
As corretoras de imóveis enfrentam esse cenário com coragem, mas também com medo. Medo de denunciar, de se expor, de perder clientes ou oportunidades. Medo de serem desacreditadas. Medo, principalmente, de sofrerem retaliações. Em muitos casos, elas sabem que suas denúncias podem não ser levadas a sério ou, pior, podem acabar se virando contra elas. Isso explica, em parte, por que o movimento que surgiu após o caso de assédio no Mato Grosso tenha sido iniciado por um homem, e não por uma mulher. Não porque falte voz às corretoras, mas porque o ambiente ainda não permite que essa voz seja ouvida com segurança.
Muitas mulheres do setor relatam que seus próprios chefes, gerentes ou diretores estimulam, direta ou indiretamente, que elas adotem um comportamento sedutor como ferramenta de venda. Comentários como “vista-se de forma mais ousada”, “use o seu charme”, ou “isso faz parte do jogo” ainda são ouvidos nos bastidores de muitas equipes comerciais. Essa expectativa velada, ou muitas vezes escancarada, coloca a mulher em uma posição dupla: além da competência técnica e do esforço de venda, espera-se que ela atue com apelo sexual, como se isso fosse parte do serviço.
Corretoras de imóveis, todos os dias, entram em apartamentos vazios, frequentam plantões isolados e atendem desconhecidos sozinhas. Muitas vezes, são deixadas sem qualquer protocolo de segurança, sem apoio e, em certos casos, sem a estrutura mínima que garanta sua integridade. O movimento iniciado por Israel levanta questões importantes que vão além da reação a um caso isolado. É um convite para rever práticas e repensar a forma como o mercado trata suas profissionais.
A paulista Alessandra Freixo, à frente da imobiliária Olhar de Corretora e há 16 anos na profissão, afirma que, apesar de nunca ter sido vítima de violência dessa natureza, já sofreu situações em que seu gênero foi utilizado de forma inadequada, muitas vezes com comentários sutis ou piadas de mal gosto. Alessandra acredita na criação de um ambiente onde o profissionalismo prevaleça, independente do gênero, mas pela valorização das competências profissionais. Uma sugestão dela é solicitar a documentação prévia do cliente e fazer uma checagem antes da visita ao imóvel, não apenas pela sua segurança, mas também para segurança dos proprietários. Além disso, Alessandra sugere avisar sobre seu itinerário a colegas ou familiares. “São cuidados que tentamos fazer para mitigar possíveis riscos, preservando minha segurança e, ao mesmo tempo, criando um ambiente de confiança entre o cliente e eu”, afirma.
A responsabilidade pela segurança das corretoras não é apenas individual. As imobiliárias precisam criar protocolos claros para o atendimento de novos clientes, exigindo, por exemplo, identificação prévia, agendamentos confirmados e visitas acompanhadas, principalmente em imóveis vazios ou localizados em regiões afastadas. Além disso, é fundamental manter canais de comunicação abertos, oferecer apoio psicológico em casos de violência e promover uma cultura organizacional que acolha e proteja essas profissionais
Essa pressão sobre a imagem e o comportamento das corretoras não apenas reforça estereótipos ultrapassados, como também as vulnerabiliza ainda mais em situações de assédio. Quando o ambiente normaliza esse tipo de conduta, ele se torna cúmplice da violência. Não é só sobre roupas ou falas: é sobre o tipo de olhar que o mercado lança sobre a mulher. Um olhar que, muitas vezes, não enxerga uma profissional, mas uma personagem moldada para agradar, seduzir e vender.
Romper com essa estrutura exige coragem e apoio institucional. É preciso que o setor reconheça seu machismo estrutural e promova uma mudança real, que passe pelo exemplo das lideranças, pela criação de ambientes de trabalho seguros, pelo incentivo à denúncia e pela valorização da mulher enquanto profissional, não enquanto produto.
Enquanto esse ambiente não mudar, muitas corretoras continuarão em silêncio. E cada silêncio imposto será uma forma de violência. O movimento iniciado por Israel é importante, mas deve ser apenas o começo. O próximo passo precisa ser coletivo e precisa, sobretudo, abrir espaço para que as próprias mulheres possam falar, agir e liderar, sem medo.
Em tempo, o criminoso que agiu contra a corretora em Mato Grosso, Felipe Otávio Calil Mendes, de 27 anos, está preso desde o dia 18 de junho, quando aconteceu o crime.