O consumo de alimentos ultraprocessados pode ser um dos fatores que explicam o aumento do câncer colorretal em pessoas jovens. É o que sugere um estudo publicado na JAMA Oncology, uma das revistas científicas mais influentes do mundo.
Nos últimos anos, médicos de diversos países têm observado um salto nos casos desse tipo de câncer, que afeta o cólon e o reto (partes do intestino grosso) em pessoas com menos de 50 anos — faixa etária em que, historicamente, a doença dificilmente aparecia. Essa tendência, chamada de early-onset colorectal cancer, ainda não tem causa totalmente esclarecida e, por isso, fatores ligados ao estilo de vida se tornaram alvo de estudo. Entre as pistas investigadas estão justamente os ultraprocessados, que já representam cerca de 60% das calorias consumidas por adultos nos Estados Unidos e vêm ganhando espaço também na dieta dos brasileiros.
No novo estudo — bastante robusto, diga-se de passagem — pesquisadores acompanharam 29 mil enfermeiras norte-americanas que, ao longo de 24 anos, responderam a questionários alimentares periódicos e passaram por pelo menos uma colonoscopia antes dos 50 anos. Nenhuma delas tinha histórico de câncer colorretal ou doenças inflamatórias do intestino.
O que os pesquisadores encontraram?
Ao longo do acompanhamento, foram identificados quase 1.200 adenomas, que são um tipo específico de pólipo (pequenos “sobressaltos” que surgem na parede interna do intestino). Nem todo pólipo evolui para câncer, mas os adenomas são considerados o caminho mais clássico e conhecido rumo ao câncer colorretal. Por isso, são vistos como lesões pré-cancerígenas.
Quando os pesquisadores compararam a alimentação das mulheres que apresentavam adenomas com a daquelas sem qualquer alteração, perceberam um padrão: quem estava no grupo que mais consumia ultraprocessados tinha um risco 45% maior de desenvolver adenomas antes dos 50 anos.
Em média, produtos ultraprocessados respondiam por 35% das calorias diárias das participantes, especialmente pães e itens consumidos no café da manhã, molhos e condimentos, além de bebidas açucaradas ou adoçadas artificialmente, como “refrigerantes zero”. Mesmo assim, o estudo não apontou um único tipo de “vilão” como responsável pelo aumento do risco.
Os pesquisadores também analisaram outra categoria de pólipos, as chamadas lesões serrilhadas. Elas seguem uma rota biológica diferente da dos adenomas e podem, em alguns casos, evoluir para câncer por um caminho alternativo. Nesse caso, porém, não houve associação entre consumo de ultraprocessados e maior risco. Ou seja: o vínculo apareceu apenas para os adenomas, o tipo mais tradicional de pólipo relacionado ao surgimento do câncer colorretal.
Limitações
A ciência ainda tenta entender por que os ultraprocessados podem favorecer o surgimento desses pólipos. Uma hipótese é que aditivos presentes nesses produtos — como emulsificantes, corantes e adoçantes — alteram o microbioma intestinal e enfraquecem a barreira natural do intestino. Outra possibilidade é que dietas ricas em ultraprocessados, geralmente pobres em fibras, vitaminas e compostos antioxidantes, criem um ambiente propício para inflamação crônica. O excesso de calorias e o ganho de peso também entram na equação, já que a obesidade é um fator de risco conhecido para tumores intestinais. Mas o impacto dos ultraprocessados parece ir além do peso, já que os resultados se mantiveram mesmo depois de os pesquisadores ajustarem os dados para o índice de massa corporal das participantes.
Apesar dos achados, os autores destacam algumas limitações. O estudo acompanhou apenas mulheres profissionais de saúde, o que pode dificultar a generalização dos resultados para a população geral. Além disso, os questionários alimentares dependem da memória das participantes e não captam detalhes como marcas ou métodos de preparo, o que pode gerar imprecisões na classificação dos alimentos. E, como qualquer estudo observacional, ele mostra apenas uma associação, não prova uma relação de causa e efeito. Ou seja, levanta pistas e reforça a necessidade de mais pesquisas.
Por outro lado, os pesquisadores destacam que os resultados se somam a um conjunto crescente de evidências de que uma dieta equilibrada e saudável tem impacto direto no risco de várias doenças crônicas. Alimentos ultraprocessados tendem a ser pobres em fibras e polifenóis — compostos com ação anti-inflamatória — e mais ricos em sal, gordura saturada e aditivos como conservantes, corantes e aromatizantes. Entre os exemplos mais comuns estão biscoitos recheados, salgadinhos, refrigerantes, macarrão instantâneo, salsichas, nuggets, pizzas congeladas e sorvetes.
“Não estamos tentando alarmar as pessoas. E não estamos dizendo que comer qualquer alimento ultraprocessado vai causar câncer de cólon”, afirmou Andrew T. Chan, autor sênior do estudo e gastroenterologista do Mass General Brigham Cancer Institute, em entrevista ao Washington Post. “Acreditamos que isso seja apenas uma peça do quebra-cabeça. Existem muitos fatores que contribuem para o risco de câncer de cólon, e esse é apenas mais um ponto para se ter em mente.”
Pesquisadores pedem ação global
Na última terça-feira, 18, a revista The Lancet publicou uma série especial de três artigos que reúne um consenso entre 43 pesquisadores de diversos países: o avanço dos ultraprocessados deixou de ser apenas uma preocupação nutricional e se tornou uma ameaça urgente à saúde pública. E, segundo eles, não dá mais para tratar o problema como uma questão de escolha individual, já que existe um sistema inteiro empurrando esses produtos para o centro do prato.
O grupo, que inclui cientistas do Brasil — entre eles o epidemiologista Carlos Monteiro, responsável por cunhar o termo “ultraprocessados” —, além de pesquisadores do Chile, Austrália e outros países, revisou mais de uma década de evidências. A conclusão é que os ultraprocessados estão substituindo alimentos in natura em ritmo acelerado — e cobrando um preço alto da saúde global.
Os dados mostram esse movimento em vários países. Nas últimas décadas, a participação dos ultraprocessados nas compras triplicou na Espanha (de 11% para 32%) e na China (de 4% para 10%). No México e no Brasil, mais que dobrou, de cerca de 10% para 23%. Em países como Estados Unidos e Reino Unido, metade da alimentação diária já vem desses produtos, um patamar que se mantém estável, porém alto.
E esse aumento, de fato, tem consequências. Uma revisão conduzida especialmente para a série analisou 104 estudos de longo prazo e 92 deles encontraram aumento de risco para uma ou mais doenças crônicas. As associações mais consistentes envolvem ao menos 12 condições, incluindo obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, depressão e maior risco de morte precoce.
Os autores reconhecem que ainda há lacunas científicas, como falta de ensaios clínicos extensos, necessidade de entender melhor os mecanismos biológicos etc. Mas argumentam que isso não deve ser motivo para adiar medidas. “Embora o debate científico seja bem-vindo, é importante distinguir discussões legítimas de tentativas de grupos com interesses econômicos de enfraquecer as evidências existentes”, afirmou a professora Mathilde Touvier, do Instituto Nacional Francês de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm).