Durante décadas, alimentos ricos em gordura foram vistos como vilões da saúde. Mas, quando o assunto é o cérebro, há sinais de que a história pode não ser tão simples. Uma pesquisa publicada na revista científica Neurology, uma das mais prestigiadas quando se trata de neurologia, sugere que pessoas que consomem queijos e cremes com maior teor de gordura ao longo da vida apresentam menor risco de desenvolver demência. Mas até onde vai essa conclusão?
O estudo analisou dados de 27.670 adultos, com idades entre 45 e 73 anos. A média de idade era de 58 anos, e cerca de seis em cada dez participantes eram mulheres. Um ponto importante é que nenhum deles tinha diagnóstico ou sinais de demência no início da pesquisa.
A alimentação foi avaliada logo no início do estudo. Para isso, os pesquisadores usaram um método que combinou um diário alimentar de sete dias, um questionário sobre hábitos alimentares ao longo do último ano e uma entrevista presencial, conduzida por profissionais treinados para esclarecer porções, tipos de alimentos e formas de preparo. O objetivo não era registrar uma semana específica, mas traçar um retrato do padrão alimentar habitual de cada pessoa.
A partir dessa avaliação, os participantes foram acompanhados por cerca de 25 anos. Ao longo desse período, os pesquisadores observaram quem desenvolveu demência e em que momento isso ocorreu.
Que tipos de laticínios entraram na conta
Nem todo leite, queijo ou creme foi tratado como igual. Os pesquisadores separaram os produtos conforme o teor de gordura:
- Queijos com mais de 20% de gordura foram classificados como “queijos gordurosos” (aqui, entram queijos brie, gouda, cheddar, parmesão, gruyère e muçarela)
- Cremes com mais de 30% de gordura entraram no grupo de “cremes gordurosos”
- Leites e iogurtes foram divididos entre versões integrais e desnatadas
- Manteiga foi analisada separadamente
O consumo foi calculado em gramas por dia, permitindo comparar quem consumia pouco, moderadamente ou em maior quantidade cada um desses alimentos.
O que os resultados mostraram
Depois de levar em conta fatores como idade, escolaridade, atividade física, tabagismo, consumo de álcool, pressão alta, diabetes e qualidade geral da alimentação, dois alimentos se destacaram:
- Queijo com maior teor de gordura: pessoas que consumiam cerca de 50 gramas ou mais por dia (algo como duas fatias médias) apresentaram 13% menos risco de desenvolver demência e 29% menos risco de demência vascular, ligada a problemas nos vasos sanguíneos do cérebro
- Creme com alto teor de gordura: quem consumia 20 gramas ou mais por dia teve um risco cerca de 16% menor de demência ao longo dos anos
Já queijos e cremes com baixo teor de gordura, assim como leite, iogurte e manteiga, não mostraram relação clara com o risco de demência.
O que dizem os especialistas
Para a nutricionista Lara Natacci, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN), os resultados chamam atenção pelo tamanho e pelo tempo de acompanhamento do estudo.
Ainda assim, ela reforça que se trata de um estudo observacional. “Ele mostra uma associação estatística, mas não prova que o queijo gordo seja a causa dessa proteção”, explica.
Um dos principais limites, segundo ela, é o fato de que a alimentação dos participantes foi avaliada apenas no início do estudo, no início dos anos 1990. “Depois disso, essas pessoas foram acompanhadas por décadas. Nesse intervalo, é muito provável que tenham mudado a alimentação, o peso e outros hábitos de vida.”
Outro ponto importante destacado pela nutricionista é que o consumo maior de queijo gorduroso, no início do estudo, estava associado a um perfil mais favorável de saúde. “Quem comia mais queijo gordo também era, em média, mais escolarizado, tinha menos doenças crônicas e mantinha hábitos mais saudáveis. Tudo isso protege o cérebro. Então é muito difícil separar o efeito do alimento do efeito do estilo de vida como um todo.”
Na prática, isso significa que o queijo, isoladamente, não pode ser visto como um fator protetor. “A evidência mais forte que a gente tem hoje para prevenção da demência não é sobre um alimento específico, mas sobre um conjunto de fatores”, diz Natacci. Entre eles, controle da pressão arterial, do diabetes e do colesterol, não fumar, manter atividade física regular, dormir bem, preservar conexões sociais e adotar uma alimentação equilibrada, rica em verduras, legumes, frutas, grãos integrais, peixes e gorduras de boa qualidade.
O queijo, segundo ela, até pode fazer parte do cardápio, mas não deve ser encarado como um alimento “milagroso”. “Ele continua sendo calórico, rico em gordura saturada e em sal. Em pessoas com colesterol elevado, doença cardiovascular ou excesso de peso, isso precisa ser avaliado individualmente.”