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Compliance como ferramenta de combate à corrupção em licitações

Nas últimas décadas, o Brasil consolidou um arcabouço institucional robusto de combate à corrupção. A Lei de Licitações e Contratos (Lei 14.133/2021) trouxe avanços importantes: planejamento contratual obrigatório (art. 18), gestão de riscos (art. 18, XI) e previsão expressa de programas de integridade como critério de desempate (art. 60, V). O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) ampliou a transparência ativa. Órgãos de controle se estruturaram, e a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) estabeleceu responsabilização objetiva de pessoas jurídicas.

Ainda assim, é difícil ignorar uma realidade: a corrupção em contratações públicas permanece disseminada em setores relevantes.

Basta olhar os grandes casos dos últimos três anos: contratos de oxigênio hospitalar durante a pandemia fragmentados em centenas de pequenas licitações (art. 75, II da Lei 14.133/2021), obras de infraestrutura com aditivos que dobram o valor original (art. 125, §1º), ou sistemas de transporte coletivo em que as mesmas três ou quatro empresas se revezam há 20 anos.

A Nova Lei de Licitações buscou enfrentar parte desses problemas ao estabelecer princípios como economicidade (art. 11) e competitividade (art. 12, I), além de criar mecanismos de controle da fase interna (arts. 18 a 24). Porém, normas não bastam quando a cultura organizacional (tanto pública, quanto privada) não as internaliza.

O art. 25, §4º da Lei 14.133/2021 prevê que “a contratada deverá apresentar programa de integridade nos termos da regulamentação”. Esse dispositivo, frequentemente tratado como mera formalidade, deveria ser visto como ferramenta estratégica de governança.

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Programas de integridade efetivos não se resumem a políticas genéricas. Precisam incluir:

  1. Controles específicos ao setor de licitações: análise de risco por modalidade (pregão, concorrência, diálogo competitivo), mapeamento de relacionamento com agentes públicos e intermediários, e monitoramento de formação de preços.
  2. Due diligence de terceiros: verificação de histórico de sanções (art. 156 da Lei 14.133/2021), impedimentos e inidoneidade, além de vinculações societárias que possam indicar formação de grupo econômico artificial.
  3. Auditoria de propostas: sistemas internos que detectem propostas com preços artificialmente coordenados ou indicativos de acordo prévio — conduta tipificada como infração grave (art. 155, IV).
  4. Canais de denúncia efetivos: não apenas para atender ao Decreto 11.129/2022, mas para identificar condutas internas incompatíveis com a probidade exigida pela Constituição (art. 37, caput).

Esses controles só produzem resultados quando integrados a uma arquitetura de governança que reflita os riscos reais das contratações públicas, e não modelos genéricos importados de outros setores. O problema é que essa não tem sido a regra.

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Contudo, muitos desses instrumentos permanecem ineficazes na prática. No Brasil, ainda é comum que empresas adotem “compliance de fachada”: estruturas formais que existem no papel, mas que não dialogam com os riscos reais das contratações públicas. Trata-se de códigos de conduta engavetados, treinamentos protocolares, comitês sem autonomia e canais de denúncia que não funcionam como instrumentos de governança. Essa fragilidade abre espaço para um fenômeno crescente — a chamada captura privada — em que organizações internalizam práticas de conluio como estratégia competitiva, mantendo simultaneamente programas de integridade apenas para satisfazer requisitos legais.

A própria Lei Anticorrupção é explícita ao estabelecer que apenas programas efetivos geram benefícios sancionatórios (art. 7º, VIII; Decreto 11.129/2022). Efetividade, porém, pressupõe liderança comprometida, recursos adequados, independência funcional do compliance officer, monitoramento contínuo e controles alinhados às especificidades das licitações.

Do lado público, a Nova Lei de Licitações instituiu obrigações de gestão de riscos (art. 18, XI) e estudos técnicos preliminares (art. 18, V), mas a prevenção moderna depende de ferramentas analíticas avançadas.

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Plataformas como o PNCP permitem rastrear padrões anômalos: concentração de fornecedores, propostas com variação mínima de preços, empresas criadas pouco antes de licitações específicas, e aditivos recorrentes. A análise sistemática desses dados pode sinalizar estruturas de fraude antes da contratação, permitindo intervenção preventiva dos órgãos de controle.

Se romper com a corrupção sistêmica é efetivamente desejado, é preciso compreender que ela opera como um ecossistema. Portanto, as soluções também devem ser sistêmicas. E isso começa por reconhecer que o compliance, longe de ser um adereço, é um instrumento indispensável de política pública, sobretudo num país em que grande parte da corrupção se manifesta nas costuras entre setor privado e administração pública.

O combate à corrupção sistêmica depende precisamente dessa maturidade: transformar a integridade em valor estratégico, não em formalidade burocrática. Enquanto isso não ocorrer, a corrupção continuará operando nas brechas — não por falta de lei, mas por falta de cultura institucional.

Leopoldo Ubiratan Carreiro Pagotto é advogado em compliance e anticorrupção, mestre e doutor em Direito Econômico pela USP, MSC in Regulation pela LSE. Foi presidente do Comitê Anticorrupção da IBA e, atualmente, é membro do Advisory Board da Integrity Initiatives Internacional.

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