Investigações sobre o uso de emendas parlamentares para financiar projetos sociais e esportivos expõem uma rede de ONGs do Rio de Janeiro que movimenta milhões de reais em verbas federais e repete os mesmos personagens, advogados e fornecedores. Documentos obtidos por VEJA mostram que INATOS, IPGIAS e ABEPE entraram no novo foco das auditorias da Controladoria-Geral da União (CGU), por determinação do ministro Flávio Dino, no âmbito da ADPF 854, que apura irregularidades no uso de emendas parlamentares. As três entidades têm ligações com a Con-tato (atual CPASC) — ONG já citada em relatório da Polícia Federal (PF) sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, atribuído aos irmãos Chiquinho e Domingos Brazão.
O que foi encontrado
A CGU concluiu que o INATOS não comprovou capacidade técnica e operacional para gerir projetos financiados por emendas, inclusive um convênio de R$ 19 milhões no Amapá, financiado por emenda de bancada. A auditoria apontou que a ONG, sediada em Vila Isabel, no Rio, atua de forma remota, sem presença institucional no Norte do país, e mantém contratos com empresas e prestadores fluminenses. Além disso, VEJA apurou que o INATOS recebeu outros R$ 9,5 milhões em emendas dos deputados Carlos Jordy (PL-RJ) e Juninho do Pneu (União-RJ) para projetos sociais sem comprovação de execução.
No caso do IPGIAS, o relatório da CGU identificou superfaturamento de R$ 401 mil, inexecução de quase R$ 1 milhão e a compra de materiais esportivos com preços até 2.000% acima do valor de mercado. Auditores constataram quadras vazias, aulas particulares no lugar das atividades previstas e materiais incompatíveis com os pagos com dinheiro público.
A ABEPE, por sua vez, recebeu repasses federais para projetos de saúde e assistência social. A CGU encontrou inexecução total de um contrato de R$ 100 mil, sobrepreço de R$ 54 mil e potencial prejuízo de R$ 178 mil por materiais não entregues. O relatório também apontou que a entidade compartilha fornecedores, estrutura de execução e ao menos um funcionário com a Con-tato/CPASC, caracterizando vínculo operacional entre as duas.
A origem do fio
A antiga Con-tato – Centro de Pesquisas e Ações Sociais e Culturais, hoje registrada como CPASC, foi descoberta pela PF durante a quebra de sigilo telefônico de assessores e familiares dos irmãos Brazão, acusados de mandar matar Marielle. Segundo relatório policial de 2024, a ONG movimentou mais de R$ 130 milhões em emendas entre 2019 e 2024 e fazia parte de um esquema de desvio de recursos públicos.
Mensagens interceptadas mostram que parte do dinheiro era usada para depósitos pessoais, festas em comunidades, compra de bicicletas e passeios de helicóptero. Mesmo após o escândalo, a entidade permaneceu ativa sob outro nome e mantém três convênios federais em vigor, que somam R$ 6,7 milhões.
O padrão que se repete
As quatro ONGs seguem o mesmo padrão: alta concentração de emendas em curto período, planos de trabalho genéricos e fiscalização precária. Quando uma delas entra no radar da CGU ou da PF, outra assume os contratos, com novo nome e CNPJ, mas mantendo o mesmo núcleo de operação.
Entre os pontos de conexão estão o advogado Carlos Eduardo Gonçalves, conhecido como “Cady”, e a gestora de convênios Samira Deodato. Carlos Eduardo é advogado da Con-tato/CPASC, sócio do IPGIAS e representante jurídico do INATOS — três das entidades citadas nos relatórios. Samira, que se apresenta no LinkedIn como gerente de projetos da Con-tato, também atua como gestora de convênios do INATOS e do IPGIAS.

No caso da ABEPE, a CGU identificou fornecedores e funcionários em comum com a Con-tato, além de projetos semelhantes executados com as mesmas empresas e endereços. Para os auditores, isso configura continuidade operacional entre as entidades.
Em relatório encaminhado ao Supremo, a CGU alertou que essas organizações “podem estar servindo para ocultar integrantes de ONGs suspeitas de desvios de recursos oriundos de emendas parlamentares”. O ministro Flávio Dino determinou o envio do material à Polícia Federal para abertura de novos inquéritos.