Durante a pandemia, entre 2020 e 2021, executivos da Globo perceberam um sucesso crescente entre os assinantes do Globoplay: séries de fantasia e horror voltadas para adolescentes e jovens adultos, como The Vampire Diaries e Teen Wolf, davam muita audiência na plataforma. Eles perceberam então o despontar de uma curiosa tendência. Primo pobre da literatura nacional e com presença quase nula historicamente na TV aberta, o terror tinha um campo promissor à frente na era do streaming. Assim foi lançado um desafio para Rosane Svartman, autora de novelas das 7 como Dona de Mim e com moral alta na emissora: bolar uma história que fisgasse esse público cativo. Quatro anos depois, o resultado se materializou em Vermelho Sangue, série que ocupou o primeiro lugar do Top 10 das mais vistas do Globoplay nos dias em que episódios novos eram lançados.
A nova produção puxa uma safra forte do terror que chega ao streaming e aos cinemas neste mês de outubro. Além da criação de Rosane Svartman, a série Reencarne também estreia no Globoplay na próxima quinta, 23, e o filme Enterre Seus Mortos chega aos cinemas no dia 30. A conquista de espaço inédito pelas produções nacionais de terror não decorre apenas da influência de fenômenos vindos de Hollywood. Nos últimos anos, de mansinho, o gênero foi ganhando relevo na dramaturgia brasileira. A princípio por meio do cinema, com apostas feitas ainda na era pré-pandêmica, como os filmes O Animal Cordial (2017) e Morto Não Fala (2018). Decisiva para a entrada do Globoplay nessa seara foi também a boa recepção de Desalma, série da plataforma lançada em 2020 que falava de bruxaria e do folclore do Sul do país.

A revolução do streaming foi o impulso que faltava para o terror se fixar no gosto da audiência nativa. Adultas e com apelo apenas para um nicho dos espectadores, as produções do gênero sempre tiveram raríssimas chances na TV aberta. Uma exceção foi a minissérie A Cura, criada por João Emanuel Carneiro em 2010 — mas o fato de ela ter empolgado mais a crítica que a audiência exemplifica os desafios para inserir o horror numa programação de massa. Agora, livre das amarras da classificação indicativa e da briga imediata pelo ibope, o Globoplay pode lhes dar o devido lugar.
O que chama atenção nessa nova safra é o esforço de roteiristas e diretores para criar um terror com legítimo DNA brasileiro. Vermelho Sangue toca em temas relevantes como a exploração da biodiversidade e se vale de um chamariz bem nacional: a protagonista Luna (Letícia Vieira) é uma menina que se transforma em loba-guará na lua cheia. “Eu queria trazer frescor para esse gênero tão consumido, mas de forma que dialogasse com o público brasileiro”, afirma a roteirista Rosane, que assina a série em parceria com Claudia Sardinha.

As novas produções promovem uma curiosa mistura entre cânones usuais do gênero e as cores brasileiras. No longa Enterre Seus Mortos, Selton Mello é um taciturno funcionário público encarregado de recolher cadáveres de animais nas estradas locais — a partir desse mote, desdobra-se um enredo sobre seitas e lances demoníacos que transpõe um clima à la Stephen King para uma típica cidadezinha do interior do Brasil.
O universo do espiritismo, crença com mais adeptos no país que em qualquer outro no mundo, foi explorado de modo arrepiante em A Cura — e volta a render na peculiar Reencarne. A série traz Taís Araujo num papel muito diferente da mocinha Raquel de Vale Tudo: ela é uma delegada que incorpora espíritos e cruza com uma jovem que alega ser a reencarnação de um antigo colega da polícia. “Vale a pena vermos outro tipo de dramaturgia, a que não estamos acostumados”, diz Taís. Nem as estrelas da Globo resistem aos horrores tropicais.
Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2025, edição nº 2966