counter Como as mulheres saíram das sombras para tornar-se protagonistas na espionagem americana – Forsething

Como as mulheres saíram das sombras para tornar-se protagonistas na espionagem americana

Esqueça o que viu nas obras de ficção sobre espionagem, especialmente as protagonizadas por homens heterossexuais e muito viris. Apesar de serem onipresentes como modelo clássico de espião, haja vista a fama de James Bond, o britânico 007, eles não detêm hegemonia histórica em torno de um ofício que envolve menos perseguições de carro e tiroteios e muito mais habilidades femininas: paciência, análise de detalhes, construção de relacionamentos e a capacidade de se misturar na multidão sem ser percebido. As mulheres também foram protagonistas nesse ofício que, no fim das contas, se resume a coletar, analisar e repassar informações secretas sobre governos, organizações, indivíduos ou tecnologias. Só que ninguém havia se debruçado sobre o papel delas nas missões. Até agora.

Em um livro fascinante e envolvente, A História das Espiãs da CIA: Secretas e Fatais, lançado recentemente pela editora Amarilys, a jornalista e escritora americana Liza Mundy ilumina a trajetória de mulheres que, durante décadas, atuaram nas sombras para o governo dos Estados Unidos. Nele, a ex-repórter do Washington Post mostra como o Escritório de Serviços Estratégicos, precursor da Agência Central de Inteligência (CIA), desempenhou função decisiva no recrutamento e na utilização de espiãs durante a Segunda Guerra Mundial. No auge de suas operações, a agência empregou 4 500 mulheres, um terço do plantel, quase 1 000 delas servindo no exterior.

A HISTÓRIA DAS ESPIÃES DA CIA, de Liza Mundy (Amarilys Editora; 544 págs.; R$ 69,00 e R$ 55,00 em e-book)
A HISTÓRIA DAS ESPIÃES DA CIA, de Liza Mundy (Amarilys Editora; 544 págs.; R$ 69,00 e R$ 55,00 em e-book)./.

Contratadas para organizar dados em fichas, o pelotão de especialistas dedicava-se a classificar informações sobre agentes e alvos. Essa habilidade era vista como um “domínio feminino” e, por isso, não recebia muito respeito institucional. A mudança começou na área de agentes de campo, dominada por homens. Acreditava-se que as mulheres não conseguiriam persuadir alguém a cometer traição em culturas machistas. A “invisibilidade” feminina, no entanto, acabou por se tornar uma vantagem. “As pessoas esperavam que elas fossem donas de casa ou secretárias, que suas atividades simplesmente não poderiam ter importância”, diz Mundy. “É simples, se você está espionando, não quer que as pessoas te notem.”

A história de Heidi August ilustra bem essa transformação. Começando como secretária nos anos 1980, ela levou uma década para se tornar agente de campo. Em sua primeira missão em Genebra, disfarçada como funcionária da ONU, August contrariou seu chefe ao decidir recrutar outras mulheres. “Ela sabia que as pessoas traem seus países por raiva do tratamento que recebem”, afirma Mundy. Em um momento de crescente feminismo, muitas profissionais estavam insatisfeitas. August cultivou uma informante com acesso à tecnologia de codificação de seu país, que contrabandeou o equipamento usando uma bolsa de tênis com compartimento secreto.

Continua após a publicidade

Outro exemplo notável é o de Abigail Spanberger, ex-agente e atual candidata ao governo da Virgínia, que descobriu na gravidez uma vantagem inesperada. “Sou mãe, estou preocupada com sua segurança, cuidarei de você”, ela dizia aos alvos, construindo confiança por meio da preocupação materna. É a antítese do estereótipo de um mito, Mata Hari, que associa agentes femininas ao uso da sexualidade. “Todas as mulheres com quem conversei rejeitaram esse modelo”, revela a autora. “Elas disseram que nunca tentaram usar seu apelo sexual para obter informações. Essa é uma situação em que você corre o risco de perder o controle, e é importante sempre manter o controle da situação.”

CONTROVÉRSIA - Bin Laden e Alfreda Bikowsky: a agente, hoje uma coach, atuou na caça à Al-Qaeda e defendeu o uso de técnicas de tortura
CONTROVÉRSIA - Bin Laden e Alfreda Bikowsky: a agente, hoje uma coach, atuou na caça à Al-Qaeda e defendeu o uso de técnicas de torturaAFP; @YBEULIFECOACHING.IG/Instagram

O trabalho das analistas tornou-se ainda mais crucial na caça a terroristas, especialmente Osama bin Laden. Foram elas que conseguiram “conectar os pontos” entre grupos terroristas, demonstrando a importância crescente do personagem. Paradoxalmente, essas mesmas mulheres que provavam eficácia no campo enfrentavam dificuldades para ser levadas a sério dentro da própria CIA. Analistas como Cindy Storer, Gina Bennett e Barbara Sude, que tentavam alertar sobre as ameaças da Al-Qaeda, lutavam contra a “burocracia gigante e competitiva da CIA”.

Continua após a publicidade

Apesar dos avanços — incluindo Gina Haspel como primeira diretora da CIA —, Mundy não romantiza as trajetórias. A autora enfatiza que “mulheres não são melhores que homens ou mais morais que homens”, reconhecendo que elas também participaram dos aspectos mais controversos da agência. O caso de Alfreda Bikowsky exemplifica essa complexidade: agente de contraterrorismo destemida e altamente competente, hoje reputada coach, ela foi crucial na caça à Al-Qaeda, mas sua defesa de técnicas violentas de interrogatório a tornou polêmica. A Segunda Guerra Mundial demonstrou que utilizar os talentos de todos os cidadãos — mulheres, afro-­americanos, nativos americanos — foi crucial para a vitória aliada. Se a história das espiãs da CIA ensina alguma coisa, é que as mulheres sempre surpreenderam nessa área, encontrando formas de transformar a invisibilidade em poder.

Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2025, edição nº 2957

Publicidade

About admin