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Como a IA permite “recriar” pessoas mortas?

Um dos episódios mais conhecidos da série Black Mirror conta a história de uma viúva que recorre à tecnologia para criar uma versão high tech do marido morto. A história foi lançada no Reino Unido em 2013 (aqui no Brasil chegou um pouco mais tarde), mas o tempo e as inovações tecnológicas permitiram que a ideia saltasse da ficção para a realidade: hoje existem aplicativos que permitem, a partir do uso de ferramentas de inteligência artificial, “trazer de volta” uma pessoa que se foi.

Usei as aspas acima, e elas talvez não seja suficientes para ressaltar, porque essa recriação que parece realista a ponto de você achar que está de fato conversando com seu finado pai, mãe, cônjuge, isso está longe de ser de fato a pessoa com quem conviveu. E é aí que mora o perigo.

Mas, primeiro, a gente precisa explicar como é que uma tecnologia consegue criar uma simulação de um ser humano com tanta eficiência.

Como a tecnologia “ressuscita” alguém?

As IAs usam rastros deixados em vida para criar uma imitação da pessoa. Ou seja, fotografias, vídeos, entrevistas, cartas digitalizadas, áudios caseiros, postagens em redes sociais e até padrões de escrita servem como a matéria-prima que servirá para trazer ao usuário a sensação de interagir com o parente finado. Um dos aplicativos, por enquanto disponível apenas nos Estados Unidos, afirma que precisa apenas de três minutos de vídeo para recriar alguém.

É o mesmo princípio por trás dos chamados deepfakes, vídeos de que a gente já falou aqui, embora esses tenham ganhado fama mais pelos abusos do que pela tecnologia em si. Em outras palavras, o sistema não sabe quem aquela pessoa foi; apenas reconhece padrões recorrentes e os reproduz de forma plausível.

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A voz segue lógica parecida. Algoritmos de clonagem vocal aprendem timbre, ritmo, entonação e pausas a partir de gravações existentes. Não há memória nem intenção ali, apenas estatística aplicada a ondas sonoras, mas o resultado mexe com nossa percepção porque a voz humana é um dos sinais mais fortes de identidade.

Quando imagem e voz se encontram, entra em cena a animação. Técnicas de motion capture, hoje parcialmente substituídas por modelos generativos, simulam movimentos faciais sincronizados com o áudio. O rosto “fala”, pisca, reage. A ilusão se completa quando um texto gerado por IA tenta reproduzir o jeito de falar da pessoa, usando seu vocabulário típico, seus temas recorrentes e até certos tiques de linguagem extraídos de entrevistas e escritos antigos.

Como eu disse acima: esses sistemas não recriam uma consciência nem recuperam alguém do passado. Eles constroem um simulacro probabilístico, uma espécie de máscara feita de dados. Nesse ponto, um componente fundamental é a nossa vontade de acreditar. Nosso cérebro costuma preencher lacunas emocionais de maneira quase instintiva, então diante de um rosto conhecido que se move e de uma voz reconhecível, a gente suspende a descrença.

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De Elis Regina a gente comum como você e eu

Você gostaria que, depois da sua morte, alguém recriasse uma imagem sua em vídeo defendendo algo que você sempre condenou? Vamos pensar num exemplo leve. Digamos que você torça para o Palmeiras, e tenha ódio do Corinthians. Daí um sujeito acha por bem lançar na internet um vídeo seu elogiando o alvinegro. Se, em vida, a ideia parece incômoda, que dirá depois da morte, quando não haverá chance de contestação.

A recriação de mortos com IA causou polêmica em 2023, quando a Volkswagen lançou um comercial em que Elis Regina cantava Como Nossos Pais ao volante de uma Kombi. Tudo com a devida autorização dos herdeiros, é verdade, mas questionou-se a campanha como algo que a cantora jamais teria topado fazer.

Quem autoriza o uso da imagem e da voz de alguém que já morreu? Em que contexto isso é homenagem, documentação histórica ou exploração comercial? A tecnologia é neutra apenas na teoria; na prática, ela amplifica intenções humanas, boas e ruins, com um realismo que desafia nossos critérios tradicionais de verdade, memória e luto.

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Mas a gente nem precisa falar de celebridades, porque essa tecnologia hoje é acessível de maneira mais ampla. O que pode acontecer emocionalmente com alguém que em vez de viver o luto – que é parte da vida, e necessário para seguirmos em frente – se apega a uma recriação de inteligência artificial?

Simulações hiper-realistas podem criar uma espécie de presença fantasmagórica permanente. Em vez de elaborar a ausência, algumas pessoas passam a interagir com uma versão algorítmica do morto, o que embaralha fronteiras entre lembrança, apego e negação. A tecnologia não foi pensada para isso, mas acaba atuando como mediadora de vínculos afetivos extremamente delicados.

Tem também um risco filosófico que costuma ficar fora do debate imediato, mas não deveria. Reduzir uma pessoa a um conjunto de padrões replicáveis, faz a gente naturalizar a ideia de que identidade humana é algo plenamente copiável, modular e reutilizável. Prefiro acreditar que somos muito mais que isso.

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