No início da tarde de 1º de julho de 2024, Daniela Soares da Silva, 31 anos, cruzou a porta giratória da agência do Banco do Brasil no bairro do Catete, Zona Sul do Rio, carregando uma mochila nas costas. Dentro, escondidos entre panos velhos e papéis soltos, havia 152 000 reais em espécie, que ela pretendia depositar em nome de uma empresa de perfumes sediada em São Paulo. Não era a primeira vez: nos vinte dias anteriores, Daniela, ex-mulher de um presidiário, havia repetido o mesmo ritual pelo menos nove vezes, sempre com montantes superiores a 100 000 reais. Naquele dia, porém, ao se dirigir ao caixa, foi interpelada por agentes da Delegacia de Roubos e Furtos da Polícia Civil. Iniciava-se ali uma investigação que viria a revelar um bilionário esquema de lavagem de dinheiro do Comando Vermelho, ou CV, a quadrilha criminosa que mais cresce no país e que desafia as autoridades em quase todo o território nacional.
O fio do novelo puxado pela interceptação do dinheiro portado por Daniela, método de combate à criminalidade organizada que costuma ser mais eficiente do que a subida do morro com veículos blindados e armamentos pesados, escancarou as entranhas financeiras do bando carioca e, ao mesmo tempo, revelou sua assustadora dimensão. O inquérito sigiloso, ao qual VEJA teve acesso, revela que entre março e julho de 2024 essa única célula movimentou 23 milhões de reais em depósitos em dinheiro vivo, sempre por meio de laranjas, em contas de empresas de fachada. Tudo indica que o volume injetado naquela agitada lavanderia é uma gota d’água em um oceano de negócios escusos. “Em um período de um ano e meio, as movimentações do grupo no sistema bancário foram da ordem de 16 bilhões de reais”, aponta o secretário de Polícia Civil do Rio, Felipe Curi. Esse montante, o maior já rastreado pela polícia nas investigações ligadas ao CV, comprova que a quadrilha está nadando em dinheiro e o desloca através de um sofisticado esquema baseado em fintechs — startups de serviços financeiros digitais — e plataformas de criptomoedas.

Seu lucrativo comércio de drogas contava inclusive com um banco próprio, o 4TBank (hoje desativado), uma ativa lavanderia de dinheiro sujo. Aberto como fintech, ele simulava atividades empresariais diversas, especialmente com moeda digital, para financiar o tráfico. A investigação sobre o 4TBank revelou ainda uma inusitada aliança do CV com o aparente idealizador do banco da bandidagem, o paulista Primeiro Comando da Capital, o PCC, outro gigante do mundo do crime com quem o bando carioca até recentemente brigava por pontos e rotas de drogas — as duas facções utilizavam os mesmos serviços para escoar montantes bilionários. “Eles entenderam que era melhor dividir receitas do que promover uma guerra em que todos saem perdendo”, explica o secretário de Segurança do Rio, Victor Santos. Ele refuta os rumores de que o tal acordo já teria sido desfeito. “Nos presídios, há criminosos do PCC em alas destinadas a membros do CV, sem qualquer indício de rivalidade”, diz.
As forças de segurança fluminenses veem uma conexão direta entre a sinistra aliança e os avanços do CV pelo país. O PCC teria aberto o caminho ao novo aliado, ao decidir se dedicar mais às vendas no atacado do tráfico internacional e passar adiante o controle de territórios, especialidade da mais antiga quadrilha fluminense em funcionamento, que domina extensas áreas no Rio de Janeiro e na Baixada. O Ministério Público paulista já comprovou que em quatro cidades do eixo Rio-São Paulo — Caraguatatuba, Lorena, Bananal e Ubatuba — a atividade criminosa mudou de mãos. “Não houve confronto nem guerra. O PCC escolheu deixar esses locais, onde hoje circulam jovens armados controlando o tráfico local, como é típico do CV”, explica o promotor de Justiça Alexandre Castilho, que atua no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) na região.

Alianças se tornaram a principal ferramenta do Comando Vermelho para alongar seus tentáculos, inclusive além-mar. A polícia mapeou atividades suspeitas em Portugal, com a violência que é marca registrada do grupo — na cidade de Seixal, o corpo de um desafeto do CV foi encontrado carbonizado dentro de um caixote. Outro alerta piscou na Itália, onde um presidiário pertencente à temida máfia calabresa ‘Ndrangheta confessou, na audiência de custódia, ter feito viagem recente a várias capitais brasileiras para encontrar chefões do CV e do PCC e estabelecer parcerias para o transporte de cocaína. A mais preocupante das novas rotas abertas pela quadrilha carioca, porém, é aquela firmada com gangues dos Estados Unidos para a obtenção de armamento pesado. Em março, a Polícia Federal deflagrou uma operação para desbaratar um esquema responsável pelo envio de 2 000 fuzis para as comunidades controladas pelo CV no Rio.
No plano nacional, a expansão não é menos agressiva — a ação da polícia contra o Comando Vermelho, presente em presídios de 25 dos 27 estados, se estende até o Amazonas. Em algumas regiões, quadrilhas regionais, com menor poder de fogo, se tornam “franquias” do CV, garantindo o fornecimento de drogas em troca de proteção da matriz. A dimensão dessa rede se escancarou na recente descoberta de três imóveis na parte mais alta da favela da Rocinha, no Rio, que funcionavam como quartel-general da “franquia” cearense. Avaliados em 6 milhões de reais, os prédios contavam com piscina na cobertura e tinham até uma passagem secreta para a mata.

Os morros cariocas, onde quem dá as cartas é o poder paralelo, se converteram em valiosos ativos do Comando Vermelho para encastelar aliados. Na mesma Rocinha, ao que tudo indica, se abriga Anastácio Paiva Pereira, o “Doze”, líder do CV no Ceará que, com cinco mandados de prisão por homicídio, organização criminosa e tráfico de drogas, segue foragido. Ainda segundo o serviço de inteligência da polícia, dois chefes do PCC suspeitos de ordenarem o assassinato de Vinicius Gritzbach, empresário que delatou a cúpula do bando paulista, estão refugiados no Complexo da Penha, outra vasta área controlada pela quadrilha carioca na Zona Norte da capital.
O Comando Vermelho tem sob seu domínio dois terços das favelas no Rio, sendo seu mais estratégico território o Complexo do Alemão, com 3 quilômetros quadrados, na Zona Norte. A gangue também vem fazendo incursões sobre as áreas de milícia. “Tem um menino de 13 anos andando pela comunidade com duas granadas na cintura e armado até os dentes”, desabafa uma moradora da Gardênia Azul, Zona Oeste, que o tráfico acaba de tomar dos milicianos. Sob a nova gestão multiplicaram-se os pontos de venda de drogas e o desfile ostensivo de armamentos. “Eles possuem armas feitas para derrubar helicópteros e atravessar blindados. Muitos traficantes usam coletes à prova de granada”, relata um professor de uma escola localizada a 200 metros de uma boca de fumo. “Para dar aula, passo por quatro barricadas e preciso pedir autorização a homens armados com fuzis e metralhadoras”, diz.

A pedido de VEJA, o Disque Denúncia fez um levantamento inédito das informações que recebeu no Rio de Janeiro do começo do ano até agora. Conclusão: quase 30% das denúncias envolvem o CV, a maior proporção entre todas as quadrilhas do estado — incluindo milícias. Boa parte dos relatos envolve extorsões na cobrança de serviços como internet, gás e TV a cabo, instalação de câmeras, uso de drones para vigilância das comunidades e até expulsão de moradores de suas casas, tudo sempre marcado por altas doses de violência. É alarmante constatar que o domínio do tráfico sobre territórios sem lei se espalha velozmente pelo país e até fora dele — uma marcha que ameaça o futuro e precisa ser contida com urgência.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2025, edição nº 2951