A versão mais recente do Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro mostra que o crime organizado nunca esteve tão entranhado na dinâmica urbana da Região Metropolitana do estado. Em 2024, quase 4 milhões de moradores — um terço da população — viviam sob controle ou influência de facções e milícias. Trata-se de um salto que ampliou em mais de 130% a área dominada desde 2007 e que transformou o poder armado em parte estruturante do funcionamento do núcleo central fluminense. O mapeamento é produzido desde 2018 pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF) e pelo Instituto Fogo Cruzado.
Nesse cenário, dois grupos puxam a expansão por caminhos distintos. As milícias lideram em extensão territorial e foram as que mais avançaram ao longo dos últimos dezoito anos: cresceram 315% nas áreas sob controle e 501% quando se soma a influência. Com foco em mercados urbanos — de transporte a serviços e imóveis —, avançaram sobre regiões de urbanização recente, onde a presença do Estado é mais frágil e o avanço costuma ocorrer por “colonização”, isto é, ocupação de áreas antes sem domínio armado.
Por outro lado, o Comando Vermelho consolidou sua força em termos populacionais. Em 2024, o grupo dominava 47,2% das população sob controle armado, cerca de 1,6 milhão de habitantes. Seu crescimento se dá sobretudo pela “conquista” de territórios densamente povoados, substituindo rivais, como o Terceiro Comando Puro e a própria milícia, e avançando em regiões de maior circulação econômica. Entre 2007 e 2024, a facção ampliou em 46,4% a área controlada, mantendo expansão constante mesmo diante de intervenções policiais.

O relatório aponta dois momentos decisivos na curva de crescimento. O primeiro, entre 2016 e 2020, marca a “grande expansão”, período em que o território dominado saltou 31,6%. A falência fiscal do estado, o abandono das UPPs e a intervenção federal de 2018 abriram caminho para a aceleração do controle armado. Foi quando cerca de 664 mil moradores passaram a viver sob domínio direto ou indireto de criminosos — movimento que expôs a capacidade dos grupos de ocupar os espaços deixados pelas instituições públicas.
A partir de 2020, surge uma “retração gradual”, embora limitada. As milícias, alvo de operações do Ministério Público e abalos internos após a morte de líderes como Ecko, perderam parte dos territórios acumulados ao longo da década. A desorganização abriu flancos para a retomada de áreas por facções, especialmente o Comando Vermelho. Na prática, o recuo não reverte o quadro geral: a Região Metropolitana segue muito mais dominada do que no início da série histórica.
A disputa por território, no entanto, se tornou mais violenta. O mapeamento mostra que áreas densas e consolidadas — onde predominam as facções — são palco de incursões marcadas por confrontos diretos para substituição de grupos adversários. Já zonas menos ocupadas, frequentemente tomadas pelas milícias, seguem sob lógica de expansão silenciosa. Segundo o estudo, essa virada do eixo da “colonização” para a conquista tem impacto direto no cotidiano das comunidades, elevando a frequência de tiroteios e a sensação de insegurança.
“Essa é uma virada de chave na segurança pública do Rio. Durante quase duas décadas, a principal forma de os grupos armados crescerem foi a ‘colonização’: uma expansão silenciosa para áreas ainda não dominadas, muitas vezes liderada por milícias em áreas menos densas. A atualização do Mapa mostra o aumento das disputas que resultam em ‘conquista’: para crescer, um grupo precisa tomar a área do outro na base da força. O custo social dessa mudança de ‘colonizar’ para ‘conquistar’ é cobrado diretamente na rotina e na segurança de quem vive nessas áreas mais povoadas. A população passa a conviver com mais tiroteios, mais insegurança e mais medo”, afirma Cecília Olliveira, diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado.

As diferenças regionais ajudam a entender o novo desenho. No Leste Fluminense, o Comando Vermelho exerce hegemonia quase total. Na Baixada Fluminense, a disputa é intensa: as milícias cresceram mais de 1.600% desde 2007 e o TCP ampliou sua presença ocupando áreas antes dominadas pela facção Amigos dos Amigos (ADA),, que encolheu drasticamente. Na capital, o fatiamento do crime se reafirma: a Zona Oeste continua majoritariamente miliciana, enquanto a Zona Sul e o Centro são hoje redutos do CV e a Zona Norte se converteu em um dos tabuleiros mais disputados da metrópole.
O estudo mostra ainda que a expansão do crime organizado está diretamente ligada à desigualdade social. Áreas dominadas têm renda média até três vezes menor do que regiões livres e concentram maior proporção de moradores não brancos.
Na visão dos pesquisadores, o domínio armado não é um desvio, mas um componente do modelo urbano atual — alimentado por omissões estatais, mercados desregulados e desigualdades históricas.