Na noite desta quarta-feira, 22 de outubro, o escritor, diretor e roteirista americano Charlie Kaufman, vencedor do Oscar por Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2003), passa na Cinemateca Brasileira em São Paulo para conversar com o público da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e exibir dois dos filmes que dirigiu. Um deles é a animação adulta Anomalisa, que acaba de completar 10 anos, enquanto o outro é novidade para os espectadores e, de certo modo, para o próprio cineasta, habituado a conduzir os próprios roteiros. Desta vez, as palavras vêm de poemas da canadense Eva H.D., enquanto o tema tem quê sobrenatural. Estrelado por Jessie Buckley, com a qual Kaufman colaborou em Estou Pensando em Acabar com Tudo (2020), os 27 minutos de Como Fotografar um Fantasma (How to Shoot a Ghost, Estados Unidos e Grécia, 2025) acompanha dois espíritos de imigrantes que assombram Atenas, vagueando por suas ruas e ruínas com ponderações sobre identidade, a passagem do tempo e o peso da história.
A parceria é a segunda vez em que Kaufman dirige textos de Eva H.D., com quem realizou Jackals & Fireflies entre a pandemia e 2023. A escala reduzida e independente, distante do modus operandi hollywoodiano, sugere que, aos 66 anos, Kaufman já não se interessa tanto pelo alto escalão americano dentro do qual se consagrou, tendo estourado com Quero Ser John Malkovich em 1999 e roteirizado mais sucessos como Adaptação (2002) e Sinédoque, Nova York (2008). Em entrevista a VEJA, o cineasta e a poeta explicam por que têm recorrido aos curtas-metragens, dispensam ideias de grandeza, detalham as origens de seus personagens deslocados e renegam a arte didática:
Charlie, por que começar a fazer curtas nesta etapa de sua carreira e ao lado de Eva?
Charlie: Nos conhecemos durante uma residência artística e nos tornamos amigos. Nosso primeiro curta, Jackals & Fireflies, começou a ser feito durante a pandemia. Eva gravou um poema da própria autoria e um amigo dela o musicou e me enviou. Eu amei aquilo e pensei que poderia ser um filme, e aí fomos atrás do financiamento. O porquê deste formato é simples: é bem mais fácil tirar um curta do papel do que um longa.
Eva: E você pode brincar mais.
Charlie: Sim. Talvez menos hoje, mas há espaço para ser abstrato, interessante ou esquisito em curtas, assim como romancistas ora se livram de amarras em contos.
Eva, seu site oficial descreve Jackals & Fireflies como um “livro fantasiado de filme”. Já Charlie descreve o próprio romance, Antkind, como uma obra impossível de adaptar. Como são desenhadas as fronteiras para vocês?
Eva: Penso que tudo pode ser tudo.
Charlie: Quando comecei a escrever Antkind, me parecia que muitos romances estavam sendo escritos com o objetivo de serem transformados em filmes, então pensei em ir contra a maré. Quando se escreve um roteiro, existe sempre uma preocupação orçamentária que paira sobre sua cabeça, mas com um livro o céu é o limite, mas não seria contra uma adaptação em série.
Eva: Seria engraçada. Penso que cada episódio poderia ser dirigido por um cineasta diferente, assim seria reproduzida a atmosfera maluca e frenética. Seria como a biografia em quadrinhos do [ex-primeiro ministro de Quebec] René Lévesque, na qual cada capítulo é desenhado por um artista, então o leitor o vê de formas diversas.
Na trajetória dos dois fantasmas, o filme sobrepõe existências comuns ao legado histórico da humanidade. Como artistas que integram uma indústria competitiva que valoriza a grandeza, o que esse tema os faz pensar?
Charlie: Acredito que existir é o suficiente. Creio também que é difícil viver quando se está focado nestes outros elementos. Pensar em como ganhar dinheiro para realizar seus projetos ou insistir na própria importância dentro de uma hierarquia apenas contamina a habilidade de conexão de um indivíduo ao mundo.
Eva: Além do mais, pensar ou não sobre isso não muda o imperativo. No fim…
Charlie: O fim é o fim.
A ambientação em Atenas é essencial para o longa. De onde surgiu a relação com a cidade?
Eva: Foi lá que escrevi o roteiro, tenho parentes atenienses. Já morei lá quando era mais nova e ficaria feliz em morar novamente, mas acho que qualquer relação com uma cidade se complica. Odiei Atenas por um tempo, depois a amei novamente.
Charlie: Isso provavelmente se aplica a qualquer relação — com pessoas, cidades ou si.
Eva: É o que acontece se você for corajoso o suficiente para tentar ter um relacionamento com outro humano.
O curta não é o que se chama de “filme político”, mas a relação entre a subjetividade dos personagens e o peso da cidade que os circunda evoca tragédias, guerras e a desigualdade. No tapete vermelho em Veneza, Eva protestou contra o conflito em Gaza. Como conciliam suas interioridades às urgências de um mundo turbulento?
Eva: Quando se trata de algo tão horrendo quanto um genocídio, o horror é que dezenas de milhares de subjetividades estão sendo sujeitas ao assassinato em massa e à desumanização. Cada uma das pessoas em Gaza é alguém com relações familiares complicadas, problemas, anseios, arrependimentos e esperanças. Pense em quão delicado é assistir a uma peça ou a um filme que lida com o tumulto dentro de uma pessoa apenas. Agora pense em dezenas de milhares de exemplares dessa complexidade sendo achatados pela maquinaria da guerra. É um pesadelo.

A personagem vivida por Jessie Buckley chega a repetir três vezes que “não pertencer é uma pátria”. O deslocamento continua um tema recorrente em seus trabalhos, Charlie, desde Quero Ser John Malkovich (1999). Por que?
Charlie: É difícil responder. Não sei se cresci com o tempo. Espero que sim. Vejo os filmes que fiz com Eva como uma tentativa de crescer, de fazer algo novo. Ela e eu temos visões diferentes de mundo. Hesito em dizer que meu deslocamento é resultado de minhas ações porque não sei exatamente o que se passa em minha mente — ou o que é minha responsabilidade e o que é minha herança. Sinto que tenho uma tendência a me isolar devido à uma autoconsciência agravada que limita minha disponibilidade para o mundo externo, mas a verdade é que o significado desta frase no filme é diferente do que há nos personagens que eu escrevo.
Eva: Suponho que o caso do filme não seja de alienação, mas talvez esteja próximo às suas criações no sentido de que ser diferente é um tipo de patrimônio compartilhado. Você pode ser o único esquisitão da sua escola ou do seu escritório, mas muitos outros compartilham dessa “nacionalidade”.
Charlie: E os conhecemos em festivais de cinema.
Eva: Além disso, quando se é uma pessoa com múltiplas etnias, ou quando se vem de uma família errante, ou quando se é um imigrante, um refugiado ou um viajante de qualquer tipo, existe um sentimento de pertencimento pela metade. É preciso encontrar outro lar fora dos slogans nacionalistas baratos que, claro, carecem de sentido de qualquer forma.
Como Fotografar um Fantasma é mais uma das histórias não lineares que dirige, Charlie, na contramão do interesse que boa parte do público tem por tramas mastigadas e finais explicados. Por que os enigmas são mais interessantes?
Charlie: Uma obra de arte vive do relacionamento entre os espectadores e os criadores, então esclarecer ao máximo e anunciar o significado de algo dentro do trabalho não permite que as pessoas tenham suas próprias experiências. O que sempre tento fazer é criar uma tela grande e complicada ao máximo, para que assim cada pessoa que assista ao filme se encontre dentro dele à sua maneira em vez de obedecer à minha prescrição.
Eva: É bom ver um trabalho que se pode cumprimentar em vez de um que se impõe sobre o espectador. É como ter um convidado em casa em vez de ter um invasor que chega e rouba todos os seus pertences.
Charlie: E depois te explica o porquê.
Eva: “Roubei tudo porque sou rico e americano”. É melhor convidar o público e encontrar algo lado a lado.
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