Os membros da realeza têm um superpoder: os parentes de vítimas de atentados, crimes terríveis, grandes acidentes ou guerras sentem-se sinceramente consoladas quando alguém da família real faz visitas de solidariedade. Consolar os aflitos talvez seja o maior de todos os seus muitos privilégios. Em compensação, precisam ter um comportamento aceitável, se não perfeito. Quando perdem esse toque mágico, não há o que segure – e se tornam um perigo para todo o sistema. O rei Charles III confirmou isso ao colocar em “suspensão” todos os títulos do irmão, o príncipe Andrew – ele continua príncipe porque é filho da rainha Elizabeth, mas para todos os demais efeitos, se tornou um pária.
O mais doloroso foi perder o título de duque de York, dado pela mãe quando se casou. Também não é mais conde de Inverness e barão de Killyleagh, nem membro da mais prestigiosa ordem do reino, a da Jarreteira, criada em 1348. O nome se refere às ligas de meia, tendo sua origem na peça de vestuário que caiu quando o rei Eduardo III dançava com uma condessa e, prevendo os comentários maldosos, disse preventivamente, em francês, a língua da corte: Honi soit qui mal y pense. Aos que não pensaram mal, honrou com a ordem requintada, cujos aparatos perduram no tempo e chamam a atenção pela combinação entre chapéus emplumados e mantos de veludo verde escuro até os pés, exibidos num único desfile anual.
Dizem que os trajes de outra era são uma das tradições que William pretende arquivar, considerando-os incompatíveis com uma monarquia moderna – embora o povão costume adorar os aparatos de época. William, que nem sempre tem uma relação tranquila com o pai, também foi uma das vozes mais firmes na defesa da exclusão do tio, cuja reputação foi destroçada pela absurda amizade com o abusador sexual Jeffrey Epstein e as mentiras que contou a respeito. A mais recente delas foi divulgada num novo pacote de emails revelados nas investigações do Congresso americano das ligações de Epstein com figuras poderosas.
“Estamos juntos nessa”, escreveu Andrew numa data bem posterior à qual havia garantido ter interrompido todos os contatos com o abusador já condenado em primeiro processo (no segundo, Epstein foi preso em Nova York e se suicidou ou foi suicidado numa cela na qual deveria estar sob observação 24 horas por dia).
HARÉM DE ADOLESCENTES
No mesmo pacote, estava um email no qual a ex-mulher do príncipe, Sarah Ferguson, pedia perdão ao multimilionário por tê-lo repudiado, só para atender a opinião pública. Mas, por dentro, continuava totalmente fiel ao “amigo generoso e supremo”. Tão fiel que levou as duas filhas para comemorar quando ele terminou a pena de prisão, uma abominação.
Com a perda do título do ex-marido, com quem mantém uma estranha ligação, compartilhando com ele o palacete onde mora numa área do parque real de Windsor, Sarah também deixa de ser a duquesa de York. As filhas do casal, Beatrice e Eugenie, esta morando em Portugal no condomínio dos supericos, jamais terão a chance de se tornarem membros da ativa da família real, o que lhes daria um elevadíssimo status. São princesas “de sangue”, como dizem os monarquistas empedernidos, e continuarão a frequentar a família, mas os próprios pais as prejudicaram gravemente.
Epstein dava a Sarah o que ela mais gosta – dinheiro. Bancou suas despesas durante quinze anos. Andrew também recebia a sua parte, além de jovens adolescentes do harém mantido pelo milionário americano “presenteadas” aos homens que ele queria agradar – ou eventualmente chantagear, a história completa ainda está sendo reconstituída.
Foi isso que levou o príncipe a ir caindo progressivamente em desgraça, batendo em reles 5% de aprovação, um poço tão fundo do qual não mais sairia. William, o futuro rei, tem 75%, seguido pela mulher, Kate, com 74%. Basta olhar para esses números para entender como o rei e seu filho, este muito veementemente, decidiram que, mesmo já tendo sido afastado de todas as atividades oficiais e perdido a forma de tratamento de Sua Alteza Real, Andrew era uma encrenca que puxava para baixo todo o sistema monárquico.
ARTE DE ESCONDER SENTIMENTOS
Ele também é sem noção e achava que poderia recuperar posições, uma insanidade fruto de pretensões só explicáveis pela posição de extremos privilégios à qual estava acostumado. Essa falta de noção foi comprovada quando ele apareceu, com Sarah, na cerimônia fúnebre da duquesa de Kent, casada com um primo da rainha, o príncipe Edward, de 89 anos.
Como era uma cerimônia familiar, Andrew deu as caras – e bocas -, ocupando um lugar tecnicamente compatível com seu status, bem atrás do sobrinho William. O desconforto do príncipe herdeiro e de seu pai ficou evidente, embora todos tenham sido treinados na arte de esconder sentimentos. Também ficou claro que Andrew tinha que ser neutralizado, mesmo no espaço reduzido que lhe restava.
Como podemos facilmente imaginar, conflitos entre reis ou príncipes herdeiros e seus irmãos não são nenhuma novidade, mas é provável que William tenha projetado no tio os graves problemas de relacionamento que o levaram a romper com Harry, pelas revelações constrangedoras – ou simplesmente mentirosas – que fez na autobiografia e em outras manifestações, depois de ter resolvido ir ficar rico na Califórnia com a mulher americana.
O caso histórico mais conhecido é o do duque de Clarence, George Plantageneta, o irmão ambicioso do rei Eduardo IV. Tendo se rebelado contra o irmão, ele perdeu a briga e, segundo a versão popularizada através dos tempos por Shakespeare, teve a opção de escolher como seria executado. Escolheu ser afogado num barril de vinho da Madeira, seu preferido.
O SOFT POWER DA MONARQUIA
Charles sabe muito bem que o sistema de mais de mil anos precisa ser preservado com todos os cuidados para sobreviver – tendo ele próprio provocado um grave abalo com o caso extraconjugal que manteve abertamente com Camilla, hoje rainha, que conseguiu vencer a grande onda de simpatia pela primeira mulher, Diana, cuja morte trágica num acidente em Paris pareceu, em determinados momentos, que levaria junto o regime monárquico.
Com todo seu anacronismo, as monarquias se reinventaram como integrantes compatíveis com do sistema democrático em países altamente bem sucedidos da Europa e do Oriente. Da Espanha ao Japão, os reis cumprem funções de chefe de Estado e de representantes das tradições nacionais, passando por Suécia, Noruega, Dinamarca, Holanda e Bélgica, além dos principados pequenos como Mônaco, Andorra, Luxemburgo e Liechtenstein (além do Vaticano, que tem um rei eleito, o papa). Poder, não têm mais nenhum.
Mas a monarquia britânica é obviamente diferente: tem mais prestígio, mais soft power, mais projeção internacional e mais heranças preservadas de outros tempos. Todos os navios da Marinha, por exemplo, são navios de Sua Majestade, bem como os correios, os tribunais e outras instituições nacionais. O poder continua a ser do Parlamento, mas o monarca tem um status superior ao dos colegas – “primos” como dizem, no original em francês – dos outros países europeus.
A olhos estrangeiros, parecem algo estranha a extrema deferência com que as pessoas comuns e também a imprensa tratam os integrantes da família real. Mas é indubitável como a presença de um “royal” orgulha qualquer evento – obra benemerente, feiras rurais, lançamento de navio, exposições de artesanato, festivais de floricultura, inaugurações de praticamente tudo o que se possa imaginar e, acima de tudo, a instância em que eles manifestam seu superpoder ao consolarem os aflitos.
Os que já nascem na “profissão”, captam desde jovens como fazer isso. Quem entra na família, como Kate, vai aprendendo. O que dizer, por exemplo, aos pais da pequena Bebe King, de seis anos, dilacerada por 120 facadas desfechadas por um jovem monstro de origem ruandesa que entrou numa aula de dança na cidade de Southport e esfaqueou treze crianças e adultos?
Todas as famílias visitadas por Kate e William em diversas ocasiões, um campo minado diante das dimensões hediondas do crime e suas graves repercussões políticas, depois se declararam muito gratas aos príncipes. Reside aí um dos segredos da sobrevivência da monarquia.
SEM CALÇAS BOMBACHAS
Outro, são as mudanças, mesmo que pequenas – mas importantes para um regime que atualmente tem nada confortáveis 51% de aprovação (28% dizem que é ruim para o país e 17% que não é boa nem ruim).
Quando houve a coroação de Charles, o menino que um dia ocupará seu lugar, George, pediu ao avô para não usar calças bombachas, pelo joelho, com meias longas, como previa o protocolo. Os coleguinhas de escola iam fazer zoação, argumentou. O rei atendeu o pedido do neto e George carregou o manto do avô usando uma túnica de veludo vermelho com calças pretas retas, tipo uniforme militar.
Foi essa capacidade de adaptação que Andrew mostrou nunca ter tido. As graves falhas de caráter poderiam ter sido disfarçadas, principalmente pela reputação conquistada na juventude como piloto de helicóptero na guerra das Malvinas. mas nem isso ele conseguiu fazer.
Achou que estava tendo um comportamento honroso ao manter a amizade com um abusador que induziu centenas de adolescentes a fazer sexo com ele e amigos. Também pediu ao segurança oficial que investigasse a vida de Virginia Giuffre, a responsável principal por sua queda ao denunciá-lo por ter sido “ofertada” a ele quando era uma das adolescentes a serviço de Epstein. Virginia se suicidou em abril, aos 41 anos, e a intervenção ilegal de Andrew está sendo investigada.
Obviamente, ele não sabe o que é honra e a maldição de Epstein engoliu mais um.
Ah, sim: tudo foi feito como se a iniciativa de abrir mão dos títulos tivesse sido de Andrew. Alguma coisa uma tradição de mil anos ensina.