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Cerco à imprensa mostra uma trilha perigosa indicada por Trump

Não foi o ineditismo da cena que a fez circular pelo noticiário, mas o alto grau de hostilidade nela contido. Em uma cerimônia na Casa Branca para anunciar um incentivo financeiro a agricultores, na segunda-feira 8, Donald Trump não engoliu uma pergunta de uma jornalista da TV ABC que cutucou o espinhoso tema de um mal explicado ataque, mais um, a uma embarcação no Mar do Caribe. Contrariado a ponto de ficar com as feições avermelhadas, o presidente soltou: “Você é a repórter mais irritante daqui, insuportável, realmente péssima”, disse, adicionando a estocada à sua vasta coleção de insultos à imprensa, um dos pilares de qualquer democracia, que os Estados Unidos, ainda na condição de colônia britânica, trataram de fincar no século XVIII.

Desde que assumiu o leme do Salão Oval, Trump fez ameaças em série de suspender licenças de emissoras que encampam “uma publicidade negativa do governo”, deflagrou processos bilionários contra grandes jornais (um deles havia tão somente publicado uma pesquisa de opinião que lhe era desfavorável), e até o Pentágono baixou uma ordem para que repórteres se restrinjam a divulgar informações autorizadas — disparos contra o livre exercício da atividade que é tão bem estabelecida na paisagem americana como “o quarto poder”.

Essas e outras iniciativas ajudam a ilustrar o afã que o próprio Trump não esconde de moldar a América ao seu modo, o que ensaiou no primeiro mandato, mas hoje o faz testando limites como nunca. Uns dias atrás, para incredulidade até de uma ala de republicanos, o governo lançou uma página oficial listando veículos de comunicação e nomes de profissionais aos quais acusa de publicar reportagens falsas, tendenciosas ou enganosas. Batizado de Ofensores da Mídia, o portal elenca os “infratores da semana” e reserva uma seção a artigos que a Casa Branca carimba com rótulos como omissão de contexto, mentira e até um “insanidade da esquerda” — tudo dentro da aba “salão da vergonha”. “Ao tentar abafar opiniões com as quais não concorda, Trump exibe uma característica comum aos autocracratas”, avalia Joseph Russomanno, professor de jornalismo da Universidade Estadual do Arizona.

A sucessão de episódios de tal natureza já faz das tentativas de cerceamento à livre expressão, que também se vê na mira em escolas, universidades, escritórios de advocacia e até em museus, um padrão que, felizmente, o Judiciário não raro consegue frear. O Pentágono, comandado por Pete Hegseth, o ultrapoderoso secretário de Defesa (ou de Guerra, como prefere Trump), foi palco de outra dessas investidas ao condicionar a permanência dos crachás de jornalistas à assinatura de um termo de 61 tópicos, dentre os quais a aprovação prévia do secretário a tudo o que for publicado — regra que teria o objetivo de regular uma imprensa “excessivamente disruptiva”. Uma dezena de profissionais sérios abdicou do crachá em ato de resistência, ao qual o governo reagiu anunciando a chegada de sessenta novos credenciados, a imensa maioria de veículos e influenciadores de extrema direita — caso de Laura Loomer, que aos 32 anos virou uma das figuras mais audíveis do MAGA, o movimento trumpista para “fazer a América grande”. Ela, aliás, tratou de reivindicar para si o escritório de um veterano do jornal Washington Post. “Essa mesa pertencia a Dan Lamothe. Agora é minha!”, provocou no X, onde a fala atingiu 2 milhões de seguidores.

x @LauraLoomer
NOVA DIREÇÃO - Laura Loomer: saiu o Washington Post, entrou a influencerX/Reprodução
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Não demorou, e o New York Times, cuja repórter que cobre o Pentágono agora posta debochadas imagens trabalhando do carro, abriu uma ação contra o Departamento de Defesa, ao qual acusa de violar a Primeira Emenda, o dispositivo da Constituição americana que mais longe vai na proteção da liberdade de expressão. Não dá para prever o desfecho. Nos últimos tempos, Trump vem obtendo inesperadas vitórias em batalhas contra a mídia. Duas das principais redes de TV, ABC e CBS, preferiram desembolsar milionárias quantias para encerrar processos abertos pelo presidente por noticiário que lhe desagradou. A CBS, inclusive, foi comprada em agosto por um conglomerado ligado ao amigo bilionário Larry Ellison, o fundador da Oracle, que agora está de olho na CNN. “Tudo isso mostra que os ataques do governo à imprensa têm cumprido seu propósito: intimidar”, avalia Roy Gutterman, diretor do centro de liberdade de expressão da Universidade de Syracuse. A ABC, por exemplo, decidiu suspender temporariamente o bem-sucedido programa de Jimmy Kimmel, por temer represálias pelos comentários do comediante sobre o assassinato do influenciador pró-Trump Charlie Kirk.

A imprensa livre faz parte da história dos americanos. Foi uma já enraizada cultura da informação, movida pela circulação de folhetos opinativos e jornais (um deles editado por ninguém menos que Benjamin Franklin), que fez intensificar o furor revolucionário que levou à independência, em 1776. Os jornalistas que então viviam sob o risco de serem presos por traição ganharam proteção da Primeira Emenda, que logo se tornou engrenagem vital para fiscalizar governos. “O que melhor explica a grandeza da imprensa diária nos Estados Unidos é que no país encontro a máxima liberdade nacional”, escreveu o francês Alexis de Tocque­ville (1805-1859), célebre pelas análises da Revolução Francesa, que ficou admirado com a efervescência de notícias, em viagem àquela nação em formação. Dali, o que se tornou uma instituição atravessou fronteiras e virou ingrediente indissociável da vida moderna. “Se as proteções à imprensa enfraquecem aqui, isso pode reverberar em vários cantos do planeta”, afirma Jason Shepard, da Universidade Estadual da Califórnia. É para o mundo observar com atenção.

Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2025, edição nº 2974

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