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‘Busco devolver um rosto e uma voz a seres reduzidos ao silêncio’

Um dos grandes personagens da escritora cubana Teresa Cárdenas é Cachorro Velho, o escravo que viveu, labutou e apanhou ao longo de seus 70 anos na mesmíssima fazenda de cana-de-açúcar – um homem que trabalhava “desde o ventre de sua mãe”.

Ele integra a constelação de vidas reais e imaginárias que povoam os livros da autora de 55 anos, reconhecida com o Prêmio Casa de Las Américas. Uma constelação que ilumina, com suas estrelas e dores humanas, um dos períodos mais tenebrosos da história – a de Cuba, a terra natal de Cárdenas, mas também a do Brasil, onde ela mora hoje.

Por isso, quem quiser enxergar a escravidão por dentro, pelo olhar, pela carne e pelas esperanças de suas vítimas e guerreiros, deveria embrenhar-se nas páginas de romances como Cachorro Velho (Pallas Editora) e nos títulos infantojuvenis da prosadora e contadora de histórias.

Cárdenas é uma das convidadas da Festa Literária de Itabira (Flitabira) deste ano, onde irá debater, entre outros temas, o papel de resistência da literatura – seja diante das heranças da escravidão que ainda hoje ecoam por aí, seja diante de um mundo em que a leitura perde terreno para as atrações e distrações digitais.

Com dois novos livros infantis na praça – As Trapalhadas de Mulo (Pallas) e Os Velhos (PeraBook) -, a autora fala à coluna sobre os temas e personagens de sua obra, a vida em Cuba e no Brasil e os desafios de escrever para os mais jovens hoje.

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Com a palavra, Teresa Cárdenas.

Boa parte de seus livros trata da escravidão. O que a literatura ainda pode trazer à luz dessa experiência histórica tão cruel nas Américas?
Mais do que tratar do tema abominável da escravidão como acontecimento histórico, minha intenção sempre foi me aproximar das pessoas que a vivenciaram: quem sobreviveu, quem lutou, quem se rebelou e, em muitos casos, quem se entregou para poder combatê-la. Em cada um dos meus livros em que abordo esse período doloroso – Cachorro Velho, Awon Babá, Mãe Sereia -, o que busco é devolver um rosto, a voz e a humanidade a esses seres que foram reduzidos ao silêncio.

Como se pudesse dar a eles uma nova vida, ainda que nas páginas de um livro?
Tenho dito muitas vezes que meu propósito é trazê-los de volta, olhar dentro dos seus olhos, de sua mente, de seu coração. Sim, mostrar suas dores e angústias, mas também aquilo que os estimulava a resistir, a sobreviver, a manter viva a esperança a quem viria depois deles.

E há figuras incríveis e pouco conhecidas que emergem desse trabalho de resgate, não?
Há histórias maravilhosas de liderança e resistência que permanecem no plano do desconhecido. Histórias reais, de homens e mulheres que foram protagonistas de feitos extraordinários e marcaram seu tempo, dos quais hoje quase ninguém recorda.

Sempre menciono com muita emoção Fermina Lucumí, uma negra cubana que liderou um quilombo – ou, como dizemos em Cuba, um palenque. Foi uma das mulheres que encabeçaram uma revolta de escravos e a primeira mulher fuzilada pelo governo colonial espanhol na ilha, em 1844. A exemplo dela, temos figuras como Carlota ou os capitães dos quilombos: pessoas que merecem ser resgatadas e conhecidas pelas novas gerações, porque representam a coragem, a dignidade e a entrega de um povo que não se rendeu.

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E existem também as vidas anônimas e comuns, digamos assim…
Sim, também há as histórias mais íntimas, de pessoas comuns: um pai ou uma mãe que trabalharam anos para comprar a liberdade a seus filhos. No meu livro Cuyaté, que vai sair em breve, abordo uma dessas histórias, inspirada numa investigação realizada a partir de jornais da época, em que publicavam as vendas e transações de pessoas escravizadas. São páginas estremecedoras, mas também revelam o amor e a força de quem não aceitou a escravidão como destino. É por isso que sigo escrevendo sobre esse tema. Porque ainda há muito por descobrir, por honrar e devolver ao seu devido lugar em nossa memória coletiva.

Tendo em vista suas vivências em Cuba e no Brasil, o que diria que mais conecta esses dois povos e países? E o que os separa?
Penso que tanto o Brasil como Cuba são países com povos maravilhosos: esforçados, valentes e generosos. Sempre digo que os brasileiros e nós, cubanos, nos parecemos muito na alegria e no amor à música, à família e à própria vida. Nesse sentido, nos reconhecemos facilmente uns nos outros. Mas também compartilhamos realidades mais duras. Em ambos os países existe o peso do racismo e da discriminação, ainda que no Brasil ele se manifeste de uma forma mais violenta, talvez porque seja um país bem maior. São feridas que ainda doem e nos recordam das marcas profundas da escravidão.

E como é viver por aqui?
Tem um tempo que vivo no Brasil e, sinceramente, muitas vezes sinto que estou em Cuba. Há um jeito de ser, uma cordialidade nas pessoas, que me soam muito familiares. A diferença está nas condições materiais. Aqui, em que pesem as dificuldades, a vida cotidiana oferece mais possibilidades e estabilidade. Isso é algo que desejaria para o meu país, que atravessa uma situação extremamente difícil hoje. 

Você é uma das mais destacadas figuras da literatura infantojuvenil no mundo. Qual é o maior desafio de escrever para crianças e jovens nestes tempos dominados por telas?
Eu acredito que só o fato de escrever para crianças e jovens já seja um desafio. Sempre digo que a literatura destinada aos mais novos é uma das mais difíceis do ponto de vista do exercício literário. O desafio não está tanto nos temas escolhidos, mas na forma de abordá-los, em como podemos comover, interessar e emocionar os leitores. E os jovens são leitores exigentes, ainda que muito abertos a ouvir e a se entreter com uma boa história.

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Há muitos anos, quando começou esse auge da tecnologia, cheguei a me preocupar com o futuro do livro e da leitura. Pensei que as telas acabariam por mudar tudo. Mas, com o tempo, compreendi que não: as pessoas seguiriam amando os livros. Cada vez que um novo meio aparece, anunciam a morte do anterior – isso ocorreu com o rádio e com o cinema, e eles continuam coexistindo. Creio que os livros também permanecerão porque têm um poder que não desaparece.

Mas o que podemos fazer para manter essa chama da leitura ainda mais viva?
É claro que a educação familiar e escolar cumpre um papel fundamental. Se uma criança cresce rodeada de livros, com adultos que leem, é muito mais provável que desenvolva essa relação íntima com a leitura. E, embora hoje o celular e as telas ocupem muito espaço, acredito que esse interesse possa ceder pouco a pouco. O livro sempre terá seu lugar como fonte de conhecimento, refúgio e crescimento.

Como dizia Maya Angelou [poeta americana], a literatura pode ser um refúgio. Para mim, ela foi desde pequena, e ainda é. Nos livros encontramos culturas, ferramentas, modos de viver. Não só aprendemos: também nos formamos como seres humanos. É por isso que acredito que, a despeito da época, um livro será sempre importante. 

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